terça-feira, novembro 26, 2013

A insustentável leveza do esmagamento dos frágeis

O discurso dos que acham que somos todos culpados da crise e de que todos vivemos acima das nossas possibilidades e de que todos, em medida certa e de ciência segura, fingimos sofrer agora é duplamente cruel. Porque é assente numa falácia. Aqueles que assinaram contratos de parcerias publico privadas com rendimentos seguros, isentos de todo o risco, com remunerações de 16% sabem que nenhuma teoria financeira suporta esta taxa obscena. Porque não há negócios, no quadro da rule of law, que sem risco permitam taxas de lucro dessa natureza, de um modo reiterado e intemporal. Ora estas pessoas sabem que estavam a assaltar os contribuintes. Ponto final.

Estes entre outros. Os que aceitam empregos de assessores com 20 anos a ganhar 5000 euros como se fosse a expressão da meritocracia.Os que aceitam o favor do amigo do partido para assumir o cargo de vogal não executivo daquilo sobre o que não sabem nem o nome. Entre estes atrás e os iletrados, ignorantes, fruto de diversas circunstâncias da vida que não possuem informação nem procuraram aprender vai um mundo. Os que tem reformas de 400 euros não podiam saber do impacto das decisões que foram tomadas em seu nome. Este mundo é demasiado assimétrico. E, curiosamente só se aduzem argumentos em favor de uma certa visão igualitária das responsabilidades quando há borrasca. Quando há maná ninguém contacta os desvalidos. Curioso não?!

 Mas a velhacaria suprema dos Neves e dos escribas jocosos do Blasfémias é a desvalorização chocarreira da pobreza. Ao negarem a existência da própria pobreza. Das crianças que chegam aos hospitais doentes de desnutrição. Que adormecem nas aulas com o estômago a ecoar em refluxos de ácido. Das pessoas que deixam de ir a consultas gratuitas porque depois não tem dinheiro para se alimentar nem para comprar os medicamentos. De pessoas que deixam os exames por fazer porque a esperança se esvaiu. Ao negarem estas coisas amanhando meia duzia de exemplos espúrios. O cigano que todos conhecem que tem um Mercedes e dois subsidios. A mulher que vai com olhar vazio ao centro de saúde mas leva uma imitação de mala Channel comprada na feira da Malveira. A criança com rosto de fome e com o pai que já rejeitou duas "ofertas" de emprego para ganhar abaixo do salário mínimo que nem dá para pagar as contas de cinco filhos aconselhádos pela bondade da Associação das Familias Grandes. Esta gente está a ser esmagada sem razão nem moral. Achais que daqui virá algo de positivo? Negar a própria existência desta gente é convidá-los a sairem do espaço público a envergonharem-se lá longe sem a vista de outros seres humanos. Condená-los à clandestinidade. Negar a sua condição é negar a sua identidade. Dificilmente uma acção totalitária passa por outra coisa. É a malvadez em estado puro. Arendt repugnar-se-ia perante estas pessoas.

 É isto o princípio que o Neves aprendeu de Cristo?


 ficam aqui duas referências da miséria humana ... a asserção de que somos todos igualmente culpados...   a certeza que há pessoas que não vão a consultas gratuitas prque não tem dinheiro e de crianças que prejudicam os rankings...tudo humor finíssimo...

segunda-feira, julho 29, 2013

do uso do cérebro

Uma das coisas engraçadas no livros dos focinhos é a velocidade com que a malta prega no mural (ou timeline se não quisermos brincar aos pobrezinhos...) um pedaço de bons conselhos de origem duvidosa e minutos depois o simétrico ... ou uma indignação qualquer e a sua negação com igual velocidade e ligeireza.


Por exemplo, muita malta publica coisas sobre as quais acha que pendem características de escandaleira ou injustiça ou corrupção ou miséria humana inexplicável ... (muitas vezes sem cuidado de auscultar da verdade da coisa) mas logo de seguida publicam um daqueles conselhos cor-de-rosa choque de optimismo gerador de culpabilização em todas as directions...

tipo: vejam bem este exemplo de sofrimento sem remissão e sem nome (uma pessoa sem  braços e sem pernas que não ouve nem vê e que foi abandonada aos seis meses e que esteve enjaulada até anteontem...) e que exibe esperança ...  como se a esperança tivesse algum ponto de referência e só fosse expectável que alguém tivesse esperança se reunisse determinadas circunstâncias e características...

Com este tipo de posts parecem desejar gerar uma culpa e vergonha naqueles que tentam ou pretendem mudar o mundo sem exibir sempre um sorriso e que de vez em quando se zangam... ou que reclamam (e muitas vezes por motivos pueris e com terceiros quando a solução se encontra ao alcance do esforço próprio)

ora gente... não há nenhuma correlação entre direito à crítica e à indignação e a situação particular de ninguém. Para se reclamar por um mundo mais aceitável, mais limpo, mais culto, mais educado, mais justo, mais equitativo, mais racional não há uma espécie de pré requisito de ponto de partida... nem, por um lado, de ter de se estar numa escala inenarrável de sofrimento nem de se ser titular de nenhuma posição de combatente diplomado em mil batalhas desde do útero da mãe...

Não se tem mais razão numa reclamação por se ser um espoliado do último grau... nem se tem menos razão porque se chegou ao combate ontem ...

Não há qualquer proporcionalidade entre as circunstâncias particulares de cada um e os princípios que são feridos ou violados ...

Opor as pessoas que se queixam da vida a outras que nada tem e (aparentemente) vêem a vida fluir com um fluxo interminável de "positividades" para apoucar os primeiros será popular entre aqueles que donos do destino de milhões querem impor a todos a ideia (pouco verdadeira) de que o destino se encontra apenas nas mãos daquele que o pode escrever se for tenaz e "acreditar" com todas as forças...

Cuidado! Não sejam os idiotas úteis da propaganda, nem dos que exploram a ideia de que só os preguiçosos estão desempregados nem dos que se locupetam com regimes a "garantir" emprego a todos sem esforço individual dos que querem emprego ou que querem melhorar a sua situação...


em todo o momento é aconselhável a utilização de sistema nervosos central ...

Senão ainda dão por vós a fazer afirmações totalmente falsas e idiotas como: "se as pessoas pensarem positivo e acreditarem convictamente consegue alterar a bioquímica e reverter o cancro"...  ou se "desejarmos realmente e com "força" acaba por acontecer o que desejamos..."

Há que distinguir a visão do mérito do esforço individual da criação colectiva de condições para que todos possam ter melhores pontos de partida mas há que distinguir a ciência da magia e da dellusion... 

segunda-feira, julho 22, 2013

A livraria

Com o fecho das livrarias há um mundo que desaparece. Um mundo de rituais. O não menor dos quais, para mim, era cheirar o livro antes de o comprar. Eram um mundo sem pressas. Com personagens. Como o Santos da Livraria Portugal. Um mundo de pouco barulho e que se saboreava e celebrava a palavra,  a densidade da personagem, a força telúrica de certas páginas em que se descrevia um pequeno quarto ou uma charneca exangue, a reviravolta desarmante na trama ...

Os tablets não me parece que substituam os livros, provavelmente não os farão desaparecer.
Mas o que temo realmente é que com a morte das livrarias se anuncie com pompa e circunstância a  doença crónica da falta de leitura ...  ou a sua substituição pela actividade de "passar os olhos" por essas "obras" que se compram para um voo  ou em promoções do Continente anunciadas pela Rebelo Pinto como oportunidades de adquirir o "último "livro" dela ou de outros grandes escritores..."... bailhamedeuze que me ocorreu logo um conceito mas não era associado à actividade da escrita...

E a prazo ... o colapso (que já se vislumbra) do pensamento ... o advento de um mundo de imbecis consumidores de verdades pré-fabricadas pré-embaladas que é só levar ao micro-ondas e que não impede o consumo simultâneo de notícias sobre quem é que aumentou as mamas ou quem é que vai animar as noites do Algarve... 

terça-feira, maio 21, 2013

Teoria Geral da Inequação ou Reductio ad absurdum

Corre por aí um video em que um garoto de 16 anos "humilha" uma professora catedrática. Pode ser visto aqui. 

Suscitou grande comoção e aprovação viral. Eu por mim devo dizer que a figura e postura do miúdo me é simpática e que a atitude da professora foi de uma certa sobranceria e desdém pelo garoto e portanto compreendo o gozo generalizado com a "humilhação". A realidade que percebo limita-se àqueles segundos.

Não tenho paciência para ver aquelas coisas, aborrece-me a leveza e superficialidade dos "debates" (já fui abordado e mesmo convidado pela "produção" por duas vezes, e tive de declinar o amável convite porque já lá vai o tempo... a vaidade pessoal está mais apaziguada, e em boa verdade nunca foi mais do que estratégia de comunicação... e o contributo que daria seria ruído de fundo como tudo o resto a que é reduzido que lá vão fazer e dizer...). Portanto, pelo que observo no video viral, o miúdo, aparentemente, decidiu criar uma marca de roupa barata confortável e que fugia à lógica do pagamento de fortunas pela mesma coisa em razão de serem feitas por marcas estrangeiras.

A professora presumiu sem bases, de modo agressivo e apressado, que a roupa era feita naqueles prédios que desabam no Sri Lanka por crianças pagas a 4 dólares mês, informada que era feita cá, não desarmou e soprou que era feita por gente a salário mínimo e o miúdo rápido disse-lhe que era melhor que estarem desempregadas. Foi aplaudido vibrantemente. A professora fez um sorriso amarelo e acaba o video.

10 a zero. Um miúdo que bate punho destroça uma instalada grisalha arrogante. Uma maneira de ver a coisa. O spin do Governo gostaria que esta imagem colasse. Um miúdo de dezasseis anos comporta a mensagem de esperança num país livre de lobbies e com iniciativa não titulada pelos maçons nem pelos partidos em oposição a uma académica das torres de marfim longe da realidade e mal agradecida para quem cria valor e impostos que lhe pagam o lugar de pós doutorada e investigadora à pala do dinheiro dos contribuintes. Outra forma de pôr as coisas. Para iniciados isto era uma derrota pesadíssima do ex ministro Gago... já estou a ver o sorriso amarelo do gajo do Público que foi visitar estabelecimentos de ciência pelo mundo inteiro e sempre alisou o caminho das teorias dos gaguistas e dos servidores do monarca como o Moniz Pereira da FCT da Nova que nunca quiseram ser os laboratórios das traseiras das empresas (dito por ele justamente num Prós e Contras)...

Mas como nunca fui bom na disciplina do maniqueísmo 101... e sempre me lixei com isso mas nunca me arrependi ... debatamos um pouco mais a coisa... por muito impopular que seja o debate e termos de usar o cérebro para pensar...

Comecemos por defender a professora com uma técnica conhecida...

 1. Ser milionário é melhor que ser da classe média e ter emprego numa empresa que se vai deslocalizar para a India...
2. Ser da classe média e ter vários depósitos de 99.000 euros em bancos europeus é melhor que ser supervisor de turno da Stapples...
 3. Estar empregado com salário mínimo é melhor do que estar desempregado sem subsídio...
4. Ser pobre na Suécia é melhor que ser pobre no Siri Lanka...
5. Estar doente de cancro da próstata em fase inicial é melhor que ter cancro de pequenas células no pulmão
6. Estar vivo é melhor que estar morto...

relativiza-se um pouco a coisa... Talvez o argumento que a professora quis introduzir (embora no registo de canelada próprio do programa, razão suficiente para nunca lá meter os pés no programa...mas vai lá quem quer o ego afagado...) possa ser melhor compreendido com este livro que uma adepta do mercado e da liberdade total de comércio e negócio escreveu quando ficou aborrecida com uma jovem aluna que pedia que parassem de comprar t-shirts porque eram todas feitas num regime esclavagista no oriente... a conclusão do livro é deveras surpreendente e interessante pelo menos para quem acredita na fábula do mercado ... (a conclusão é que a aluna deve continuar a clamar contra o esclavagismo) mas podem ler o livro e concluir por vós ... é este aqui As viagens de uma t-shirt no mundo global ... e a prazo o consenso de Washington virar-se-á contra os seus feiticeiros... e sim um dia alguém vai voltar a clamar por empregos que paguem mais do que a fome... mas a prazo este miúdo também será um herói louvável ... pelo inconformismo pela iniciativa pela criatividade pelo desafio porque podendo ficar quieto fez e não é dele a responsabilidade de resolver os problemas do mundo ...


Mas não se aplauda o trágico que é estarmos a congratularmos-nos com o facto de na Europa o modelo de desenvolvimento ser assente em mão de obra barata ... não nos regozijemos com o facto de ser melhor ter emprego que paga uma vida de merda a não ter emprego nenhum ... temos de exigir de nós e dos governantes que olhem para além da crise financeira em que se emporcalharam e em que comem o pão amassado por escroques gananciosos por certo não apreciados pelo futuro cardeal de Lisboa e que pensem e ouçam sobre uma ordem económica que não deve nem pode passar por competirmos com os soterrados dos prédios do Sri Lanka...

não é por certo aquele o futuro que queremos para os nossos filhos porque a técnica de exagerar até ao absurdo um dia será ... "ah o meu filho licenciado em física dos plasmas trabalha num call center a 450 euros mês mas enfim não tem deformações nos ossos dos punhos por manipular uma máquina de costura 14 horas por dia nem corre o risco de ficar soterrado porque o barraco onde trabalha é inspeccionado por finlandeses"....

e aos que agora descobriram a teoria de Schumpeter escrita em 1934 e curiosamente corrigida em 1942 (aconselho  que leiam... ) e se entusiasmam puerilmente com tanto bater punho não desprezem assim sem mais quem pensa e quer pensar mais fundo ... desprezem  a sobranceria e a arrogância intelectual mas não o pensamento ... ficamos sempre mais pobres quando a turba aplaude por quem tem reflexos pavlovianos ... 

terça-feira, fevereiro 19, 2013

Basicamente é isto ...

Levemente a propósito deste texto que é formidável. e destas bizarrias da moderna filologia... como "o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas"... que levaram à construção de um meta discurso milhares de vezes mais complexo (e verdadeiramente inútil)que o próprio discurso... Mas realmente no polo oposto ...porque no texto citado se revela a existência de uma exagerada complexificação redundante e pouco parcimoniosa do discurso, enquanto o que me preocupa é a simplificação imbecil das matérias e o processo de criação de idiotas incapazes de pensar... Quando eu estudei, mesmo ao nível da licenciatura, tive alguns belíssimos professores, um ou outro mesmo notáveis a fazerem recordar-me a minha professora primária. Era, então, o ensino baseado num "paradigma" diverso. O professor(a) punha na nossa frente a carne ou o peixe, os condimentos, os acompanhamentos, os instrumentos, o fogão, os recipientes, os panos e dava-nos, por vezes manuais de culinária e gastronomia com milhares de páginas prenhes de possibilidades imensas e incomensuráveis. Claro que havia professores capazes de fornecer um cherne ou um naco de suculenta carne e temperos exóticos e outros apenas capazes de fornecer uns carapaus e um pedaço de alcatra. Mas a confecção era por nossa conta e risco. A prática ajudava e no final comíamos o que tínhamos confeccionado com o nosso engenho e arte. A nota dependia do cheiro, do paladar, da vista, do sabor e do apetite. Hoje cada vez mais o papel do professor(a) é fornecer um micro ondas chinês, com um manual de culinária simplificado a vinte slides. E, uma embalagem de comida pré cozinhada que sabe a plástico e é igual da Guatemala ao Zimbabue da Suécia à Tailândia. O resultado final da confecção é irrelevante porque é pré-determinado. Avalia-se se o aluno sabe meter o pacote dentro do micro ondas se identifica o botão da potência e do tempo e se sabe manipular os ditos cujos. Tudo normalizado. Tudo fácil de verificar através de sábias políticas de "qualidade".

segunda-feira, fevereiro 04, 2013

Kommendörsgatan

A primeira vez que saí do país sem ser na companhia dos meus pais foi aos dezassete anos, na vêspera de entrar para a Universidade em 1977. Na altura ainda ia com a fantasia calada de me esquecer de regressar. Antecipando em trinta e poucos anos os sábios conselhos dos nossos governantes actuais. Mas, e lamentavelmente, sempre amei demasiado este país e das várias vezes que me encontrei lá fora nunca me passou pela cabeça não voltar. De qualquer modo, e aproveitando a boleia de uns “primos” mais que afastados lá fui para a Suécia, que é hoje, para mim, uma segunda pátria, pelo menos afectiva. Já lá voltei vezes sem conta. Pelo caminho começaram os choques culturais de um jovem provinciano que habitava Lisboa, e cuidava que a liberdade recém conquistada e várias noites à roda de fogueiras na Costa da Caparica, a discutir os filmes de Win Wnders e Tarkovsky ou os livros de Kundera ou o significado hermético do Carpet Crawlers o tinham preparado para enfrentar a Europa de Lars von Trier. Não tinham. Por exemplo, na Alemanha essa potência sempre estranha e telúrica tão wagneriana, numa bomba de gasolina bloquei logo no desiderato de lavar as mãos. Um gesto prosaico mas que na sofisticada casa de banho pública implicava, então, o domínio do posicionamento correcto das mãos em frente à célula foto-eléctrica que operava a torneira! Nada que um momento de teatral fingimento olhando de soslaio o que faziam os demais não revelasse o “segredo” de tamanha tecnologia. Os choques “tecnológicos” sucediam-se. Talvez radique nessa frustração o facto de vinte anos mais tarde já me encontrar doutorado, precisamente no assunto de como diabo se criam coisas novas, porque é que são adoptadas e porque é que são (eram...) criadas sobretudo naqueles países mágicos do norte... Na Suécia vi-me confrontado com variadíssimas experiências em quase todos os domínios da existência humana. Curiosamente pouquíssimos, no plano do consumidor/produtor de objectos “usa/deita-fora-porque-é-barato-e-sai-a-versão-5-já-na-semana-que-vem” a que alguns parecem querer, agora, reduzir a vida e valor da condição humana. É indescritível a experiência de viver numa comunidade meio anarquista que juntava um músico, um operário dos estaleiros navais, um estudante de engenharia electrotécnica, uma designer gráfica e uma população flutuante que rodava nos dois outros quartos vagos, um dos quais ocupei em breves semanas! Descobri um grupo de rock com o qual partilhei uma ou duas músicas num gig marcante (pelo menos até à parte em que estive na plena posse das faculdades cognitivas normais...). Descobri vários sabores e consegui fazer um cozido à portuguesa que me garantiu duas semanas de isenção de tarefas domésticas! Ainda hoje quando vou a Gotemburgo regresso àquela rua. Kommendörsgatan. Descia essa rua todos os dias durantes semanas em direcção ao centro, à padaria e ao café. Comprei inúmero material em segunda mão para tocar guitarra, albuns em vinil, roupa quentíssima para o nosso país. Perto dessa rua existia um café de artistas e de intelectuais que mal souberam que eu era português me bombardeavam com perguntas sobre a revolução dos cravos . Nessa altura ainda era um ingénuo adolescente, crente na bondade que o Rousseau vira na natureza humana. E, claro, deslumbrava a audiência com descrições maravilhosas e fantasiosas da utopia que se desfolhava por cá. Mais para me vingar da inveja de uma sociedade que funcionava (tão simplesmente funcionava...) e que tinha tantos gadgets e processos que eu nem sabia que existiam para além dos filmes de ficção tipo espaço 1999... Trouxe livros, fotos, recordações e amizades. Não tinha quase dinheiro nenhum mas amanhei maneira de ver os Dire Straits ainda em início de carreira. E de ver o Frank Zappa. Houve dias em que nem dormi. Outros em que acordei no outro extremo da cidade ou mesmo fora dela. Tinha dezassete anos, autorização dos meus pais e do Ministério do Exército (ou coisa assim) para sair do país. E pela primeira vez em muitas vezes voltei ao meu país. À minha terra. Mas ainda hoje um pouco do que eu sou foi ganho em Kommendörsgatan. Sem sombra de dúvida a melhor parte de mim e aquela que ainda tem uma esperança infinita no Homem, aquela que conta estórias formidáveis aos meus filhos, aquela em que ainda sonho fazer coisas novas, essa ainda trás um bocado daquela descida ao fim da tarde na direcção do rio, com a brisa fria no rosto e a idade em que o impossível é uma treta.

sábado, janeiro 05, 2013

A angústia

Não há paracetamol para a angústia. A minha corrói-me por dentro. É crescente o sentimento de exílio na circunstância. Já não é só a sensação de ser um alentejano desterrado num "outro" lado qualquer. De ser um gestor por acaso ou um professor por acidente. Mas de estar a viver um momento errado numa história escrita por Carrol. É a sensação de sair da precariedade da existência e de olhar de fora para dentro e de achar pouco mais do que ridículo o "plot". Aprisionado numa trama que não é certa nem é séria nem é justa. Tem dias em que isto é decepcionante. Noutros apenas cansativo. Ainda noutros assaz paradoxal. E, perante perplexidades várias já vão escasseando as forças para o movimento. Tanto mais que a causa final de Aristoteles é um logro. Um embuste.