segunda-feira, fevereiro 04, 2013

Kommendörsgatan

A primeira vez que saí do país sem ser na companhia dos meus pais foi aos dezassete anos, na vêspera de entrar para a Universidade em 1977. Na altura ainda ia com a fantasia calada de me esquecer de regressar. Antecipando em trinta e poucos anos os sábios conselhos dos nossos governantes actuais. Mas, e lamentavelmente, sempre amei demasiado este país e das várias vezes que me encontrei lá fora nunca me passou pela cabeça não voltar. De qualquer modo, e aproveitando a boleia de uns “primos” mais que afastados lá fui para a Suécia, que é hoje, para mim, uma segunda pátria, pelo menos afectiva. Já lá voltei vezes sem conta. Pelo caminho começaram os choques culturais de um jovem provinciano que habitava Lisboa, e cuidava que a liberdade recém conquistada e várias noites à roda de fogueiras na Costa da Caparica, a discutir os filmes de Win Wnders e Tarkovsky ou os livros de Kundera ou o significado hermético do Carpet Crawlers o tinham preparado para enfrentar a Europa de Lars von Trier. Não tinham. Por exemplo, na Alemanha essa potência sempre estranha e telúrica tão wagneriana, numa bomba de gasolina bloquei logo no desiderato de lavar as mãos. Um gesto prosaico mas que na sofisticada casa de banho pública implicava, então, o domínio do posicionamento correcto das mãos em frente à célula foto-eléctrica que operava a torneira! Nada que um momento de teatral fingimento olhando de soslaio o que faziam os demais não revelasse o “segredo” de tamanha tecnologia. Os choques “tecnológicos” sucediam-se. Talvez radique nessa frustração o facto de vinte anos mais tarde já me encontrar doutorado, precisamente no assunto de como diabo se criam coisas novas, porque é que são adoptadas e porque é que são (eram...) criadas sobretudo naqueles países mágicos do norte... Na Suécia vi-me confrontado com variadíssimas experiências em quase todos os domínios da existência humana. Curiosamente pouquíssimos, no plano do consumidor/produtor de objectos “usa/deita-fora-porque-é-barato-e-sai-a-versão-5-já-na-semana-que-vem” a que alguns parecem querer, agora, reduzir a vida e valor da condição humana. É indescritível a experiência de viver numa comunidade meio anarquista que juntava um músico, um operário dos estaleiros navais, um estudante de engenharia electrotécnica, uma designer gráfica e uma população flutuante que rodava nos dois outros quartos vagos, um dos quais ocupei em breves semanas! Descobri um grupo de rock com o qual partilhei uma ou duas músicas num gig marcante (pelo menos até à parte em que estive na plena posse das faculdades cognitivas normais...). Descobri vários sabores e consegui fazer um cozido à portuguesa que me garantiu duas semanas de isenção de tarefas domésticas! Ainda hoje quando vou a Gotemburgo regresso àquela rua. Kommendörsgatan. Descia essa rua todos os dias durantes semanas em direcção ao centro, à padaria e ao café. Comprei inúmero material em segunda mão para tocar guitarra, albuns em vinil, roupa quentíssima para o nosso país. Perto dessa rua existia um café de artistas e de intelectuais que mal souberam que eu era português me bombardeavam com perguntas sobre a revolução dos cravos . Nessa altura ainda era um ingénuo adolescente, crente na bondade que o Rousseau vira na natureza humana. E, claro, deslumbrava a audiência com descrições maravilhosas e fantasiosas da utopia que se desfolhava por cá. Mais para me vingar da inveja de uma sociedade que funcionava (tão simplesmente funcionava...) e que tinha tantos gadgets e processos que eu nem sabia que existiam para além dos filmes de ficção tipo espaço 1999... Trouxe livros, fotos, recordações e amizades. Não tinha quase dinheiro nenhum mas amanhei maneira de ver os Dire Straits ainda em início de carreira. E de ver o Frank Zappa. Houve dias em que nem dormi. Outros em que acordei no outro extremo da cidade ou mesmo fora dela. Tinha dezassete anos, autorização dos meus pais e do Ministério do Exército (ou coisa assim) para sair do país. E pela primeira vez em muitas vezes voltei ao meu país. À minha terra. Mas ainda hoje um pouco do que eu sou foi ganho em Kommendörsgatan. Sem sombra de dúvida a melhor parte de mim e aquela que ainda tem uma esperança infinita no Homem, aquela que conta estórias formidáveis aos meus filhos, aquela em que ainda sonho fazer coisas novas, essa ainda trás um bocado daquela descida ao fim da tarde na direcção do rio, com a brisa fria no rosto e a idade em que o impossível é uma treta.

2 comentários:

Animal disse...

parece cavia um treinador do porto (pedroto, acho) que dizia que "impossível é meter um guarda-chuva no cu e abri-lo lá dentro". num tem nada a ver ca suécia, mas alembreime por causa do impossivel ser uma treta...

Lipstick and Lollipop disse...

Muito bom... Gostaria de ler mais textos destes em vez das babuseiras (muitas vezes inúteis) que mete no face...