quarta-feira, março 19, 2014

Trânsito em Julgado

Aparentemente os únicos culpados da crise já foram condenados em mais vinte anos de servidão e de punição calvinista. Ou seja os idiotas que continuarão a pagar as PPP's, que enriquecem meia duzia de bancos e "empreendedores", os tolos que sustentarão a "limpeza" dos BPN's dos BPP's dos Banif's dos BCP's e que assistirão, na primeira fila, à prescrição dos processos contra todos o meliantes que dissolveram dinheiro em negócios bizantinos e ilegais, os palermas que ficarão sem assistência médica, sem educação de qualidade, sem reformas já foram informados de mais uma sentença de décadas de submissão sob vigilância apertada por parte daqueles que recusam regular o delírio de criação de instrumentos e veículos financeiros que delapidam a riqueza criada por todos os demais e aqueles que com engenho, capital ou trabalho se levantam diariamente para perseverar e labutar honestamente.

Escapam, yet again, da cadeia, os Costas, os Varas, os Loureiros, gente menor quando comparada com os criadores de gigantescos esquemas de pirâmide que movem políticos como peões, ou com os médios criadores locais de rendas garantidas pela criadagem política. O que diferencia esta gente toda não é a natureza do ADN é apenas a dimensão do ganho. Entre o subprime de Wall Street, a PPP da auto estrada inútil da Figueira a Leiria ou os quadros de Miró do Costa há traços comuns. Claro que o Lloyd tem panache, o Mota usa perfume Korous, o Salgado usa Brylcreem em vez de oleo de fritar peixe, e o Costa mastiga sandes de atum como um brejenço e ri-se de boca cheia como um javardote. Mas todos pertencem à mesma agremiação.

Nenhuma destas almas é culpada de nada. Todos vagueiam etéreos sobre a ambrósia do Olimpo.
Os únicos condenados já com trânsito em julgado e que suportarão sem lamento ou desabafo a monumental transferência de riqueza usurpada com a cumplicidade de políticos que se substituem como se troca de lençõis e atoalhados ao sábado, são aqueles que acham que tem de penar as cangas que deus nosso senhor lhes deu para penar.

O que mais admiro nso facínoras que lideram todo este saque organizado é a extraordinária capacidade para convencer os imbecis que pagam a conta que não existe nenhum outro caminho nenhuma alternativa que não seja este confisco depudorado e esta selvajaria de escravatura de gerações sem expectativa sem esperança, agradecidas e venerandas porque a "alternativa" seria quiçá serem adultos e assumirem a vida e os riscos que ela comporta. 

domingo, janeiro 26, 2014

Da liberdade e da individualidade

O que de mais nobre fornecemos ao Mundo, por aqui na Europa, foi a existência de um valor supremo de Liberdade e o princípio que um individuo é um ser único insusbtituível cuja dignidade é inegociável e irrevogável. Em face das agruras e obstáculos da vida, provenientes quer da dureza do meio quer da nossa inquebrantável tenacidade em progredir e mudar a nossa condição de existência, fomos descobrindo que os laços de coooperação nos permitiam evoluir e consolidar melhores condições de existência, de reprodução da nossa espécie e de preservação do saber que íamos passando aos que nos sucediam.

Durante séculos fomos criando teias de cumplicidade, fraternidade e solidariedade que nos permitiram, no contexto do valor e do princípio mencionados, elevarmo-nos acima das bestas irracionais e das pulsões mais primitivas. Frequentemente alguns de nós regressam ou parecem preferir o contexto da tentação em dominar ou subjugar parte dos outros por forma a acumular maior conforto e bem estar de qualquer espécie. Há quem não se sinta bem com um óptimo de Nash mais equilibrado. E surgem as possibilidades de retorno a um egoísmo primal em que triunfa o forte sobre o fraco, a frieza sobre o escrupúlo e gula sobre a compaixão. É um aparente triunfo da Liberdade do único que se impõe aos demais numa luxúria de equívocos de individualismo, como se no final só pudesse existir um único. Noutras circunstâncias, e de modo quase simétrico, periodicamente surge a tentação de substituir a solidariedade genuína e expontânea, com o ordenamento hierarquizado de submissões e lealdades baseadas não na fraternidade mas no medo e na falsa sensação de segurança fornecida pelo vínculo desresponsabilizador da obediência cega. Em última instância o grupo dilui a identidade individual e esmaga a liberdade através da acção instrumentalizada em favor do absurdo injustificado e injustificável. Como se no final só pudesse existir um único amorfo indistrinçável dos demais.

Em ambos os casos derrotam-se a liberdade e a individualidade. Nos extremos temos o pesadelo dum egoismo que destrói o sentimento de identificação com o outro ou um grupo que esmaga todos até que ninguém possuí uma identidade única. Actualmente parecemos divididos entre estes dois pesadelos. E com pouco vislumbre de remissão. 

quinta-feira, janeiro 02, 2014

para que não se perca na espuma ...




OPINIÃO

Em busca da Europa perdida

Como se devia ter feito há 80 anos, é preciso hoje mergulhar nos problemas, chamar as coisas pelos seus nomes, identificar o adversário real, transformar a crise em conflito.




Há precisamente oitenta anos, no terrível período que se seguiu à primeira Grande Guerra, à crise de 1929 e à Grande Depressão, quando a Europa parecia de novo "um arquipélago de antagonismos e conflitos", escreveu Bento de Jesus Caraça um lúcido artigo nas páginas do semanário Globo, intitulado “Crepúsculo da Europa”. Nele afirmava: “A Europa não tem de que queixar-se: tal é o resultado lógico e natural da sua obra…Dela saíram as sementes do que vai pelo mundo: foi dela que partiram os descobridores e os colonizadores, os pregadores e os traficantes. A Europa criou o cristianismo e o capitalismo, a mecânica e as ideologias, as armas aperfeiçoadas e o princípio das nacionalidades… Se hoje o controle do mundo lhe escapa, não tem senão que resignar-se – como os velhos cansados se resignam a passar os símbolos da autoridade aos mais novos.”
Era por demais evidente que o caminho que se estava a seguir então era errado. E que a busca de um “espírito europeu” – ou de uma “identidade europeia” como diríamos hoje – não era mais do que uma quimera, tão fútil como o de definir uma identidade “asiática” ou “americana”, ou “africana”… um exercício vácuo, um projeto ilusório para enganar os incautos. O que era preciso era mergulhar nos problemas, sem preconceitos, para se poder agir.
Como sabemos, não foi este o rumo escolhido. A Europa foi atraída para uma segunda Grande Guerra, da qual saiu derrotada, devastada, dividida entre uma aliança com os Estados Unidos a ocidente e um pacto com a União Soviética a leste. A obsessão americana com a segurança bem como o terror de que os soviéticos chegassem às margens do Atlântico induziu as nações europeias aliadas, em reconstrução sob a alçada do Plano Marshall, a reagruparem-se em comunidade económica. A propaganda americana contra a ameaça do comunismo centrava-se sobre o conceito de mundo livre, defensor da democracia, em luta pelos direitos humanos. A palavra “capitalismo” desapareceu do domínio público e da política. E a esquerda social-democrata viu realizado o seu sonho de conquistar o poder. A grande promessa – transformar o mundo – que carregava no seu ventre desde o século XIX iria finalmente ser cumprida. De facto, a esquerda criou o Estado-providência nas suas várias declinações nacionais, mas foi basicamente surpreendida e dizimada pelas “crises do petróleo” e pela globalização financeira e económica que se lhes seguiram. Na realidade, a esquerda não transformara o mundo. Esquecera-se de que existia o capitalismo e de que o sistema-mundo capitalista em evolução não tolerava pretensões de hegemonia militarmente desestruturadas.
A construção europeia entrou num impasse que apenas as novas adesões escondiam. Mas o golpe fatal na ilusão de uma europa soberana resultou da implosão do bloco soviético. A partir daí, a política dos europeístas consistiu essencialmente em “atirar para a frente”, uma versão cosmopolita de “todos ao molhe e fé em Deus”, na vã esperança de que os problemas que surgissem teriam o condão de reforçar a coesão das nações europeias e robustecer a União. A Europa e a esquerda tinham-se esquecido de que o capitalismo continuava a existir e a evoluir. Veio a crise de 2007 e 2008, que ainda não nos largou, e viu-se o descalabro em que caímos. A democracia representativa entrou no vórtice da crise. Esta é uma das primeiras perceções que avultam de um projeto de investigação e reflexão sobre a crise europeia iniciado recentemente pela Universidade de Cambridge e pela Fundação Maison des Sciences de l’Homme, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.
A crise da Europa é também o resultado de uma leitura errada da história. Em primeiro lugar, acreditou-se que «é possível gerir a transição» como se as nações fossem soberanas no sentido em que se aplicava a palavra “soberania” no século XIX! A “governança” não foi introduzida no vocabulário político por ingenuidade… Em segundo lugar, admitiu-se piamente que «as economias convergem no decorrer do tempo» ignorando que o capitalismo tem sempre, pelo contrário, um efeito de “polarização”, provocando divergências na evolução das economias do sistema-mundo e jogando com elas com o objetivo de acumular cada vez mais capital.
Não havia assim qualquer hipótese de o voluntarismo e os instrumentos da esquerda (os Estados-providência principalmente) resistirem ao confronto com a política de direita e a sua retórica de liberalização, desregulação e privatização. Talvez porque o campo da direita se tenha tornado internacional, seguindo os ditames do capitalismo informacional de hoje, ao passo que a esquerda se foi fragmentando e acantonando, tentando defender o que resta da soberania (os territórios) das nações, ou mesmo atirando-se para a frente se a oportunidade parece espreitar. Mas é claro que assim também não irá longe.
Como se devia ter feito há 80 anos, é preciso hoje inescapavelmente mergulhar nos problemas, chamar as coisas pelos seus nomes, identificar o adversário real, transformar a crise em conflito, procurar as alianças onde existem as solidariedades que vão cimentar o mundo novo. Não onde os interesses do mundo-espetáculo nos pretendem acorrentar.
Professor universitário, Físico