terça-feira, setembro 18, 2012

A Indústria

Começa, para mim, um novo ano escolar. Preparar aulas. Adaptar programas. Renovar outros. Actualizar outros. De ano para ano, desde que decidi "experimentar" o ensino e fui ficando, as condições tem-se modificado. A profissão tem-se modificado. De docente, na verdadeira acepção da palavra, aquele que ensina, a actividade foi-se tornando, de modo crescente e irreparável, uma sequência de actos burocráticos, de litanias, de exibições de "power points", de "normalizações". E, o que legitima a capacidade para ser parte destas cadeias de transmissão, destas linhas de montagem de consciências dormentes, desta inoculação de conformismo e de saberes conservados em refrigeradores, desta passagem de pacotes pré aquecidos, é a publicação anual de um artigozinho. Pelo menos.

Faço, hoje, parte de uma enorme indústria. Sou uma espécie de operário mais especializado. Sempre em risco de ficar obsoleto. E posso mover-me para onde quiser. Para fora ou para dentro. Do país ou do estrangeiro. Do público ou do privado. A indústria é total e global.

E, esta indústria do conhecimento está já formatada e devidamente regulada. Talvez se possa perguntar em benefício de quem? E, aqui reside um busílis que me incomoda cada vez mais. É que é em demasia em favor de uma indústria conexa. A das publicações. Paulatinamente, fomos passando de um mecanismo colegial, de apreço pelos pares e de refutação e crítica das investigações e das propostas de postulados para uma verdadeira obsessão que beneficia descaradamente alguns actores fora do sistema. Os que vivem de publicar os artigos que os professores e investigadores tanto necessitam de publicar para, já nem é avançarem na carreira que hoje fica tudo em professor auxiliar, mas, permanecerem na rat race. E, esta boa gente cartelizou a coisa. São meia dúzia de grandes casas internacionais, que dominam as publicações e que cobram fortunas consideráveis pela reprodução e consulta dos artigos que entretanto deixaram de ser propriedade intelectual dos seus autores. E, no seu interesse desenvolveram, naturalmente, um mecanismo de notação. Só as suas revistas são de "primeira linha". Só as suas revistas contam! O contexto proporciona o desenvolvimento de laços de favores, de grupos de "pertença" que já nada tem a ver com o "avanço do conhecimento". Num desespero por se manterem afloat, os autores nem se preocupam com a indignidade de alguém se apropriar de parte do seu cérebro. Nem acham isto repugnante. É que nem tem tempo. Pressionados pelo publish or perish, esmagados pelo volume ciclópico de relatórios de qualidade a preencher e de normalizações da forma como "dão" as aulas, os professores participam nestes processos que nada mais são que um travesti de qualidade na passagem do conhecimento aos alunos, os professores cedem cada vez mais o seu estatuto a uma crescente proletarização da condição social e banalização do seu acto de docência. O que se "aprende" e "ensina" é o mesmo à escala planetária.

Entretanto a indústria alimenta-se dos seus próprios filhos. Novas gerações que buscam, poucos o saber, e muitos a "certificação, são os novos consumidores destes artigos e manuais. Eles, querendo entrar na rat race tem de publicar os artigos que cedem gratuitamente para que novas gerações os venham citar. Para que façam prova de "erudição".

O produto final é cada vez melhor a avaliar os relatórios da OCDE. E das agência de "notação". E os rankings. Feitos por publicações que pertencem aos grupos financeiros das editoras. E as agências governamentais que ajudam as universidades a competir pelos clientes no grande mercado internacional.

Deixo à vossa consideração o que sai anualmente do sistema. Por qualquer das saídas. Deixo também à reflexão se é isto que pagamos para os nossos filhos e se é este o futuro que precisamos e queremos.

Eu, por enquanto encontrei um espaço de liberdade e de criatividade que me coloca em linha directa com uns consumidores directos do produto fabricado na universidade. Alguns empresários e quadros que procuram conhecimento genuíno e não liofilizado para juntar água numa Bimby. Enquanto me for possível devo dizer que vou dar o meu melhor nesta actividade. E, continuarei a ser uma maverick nas aulas mais tradicionais. Enquanto me permitirem. Para já a coisa até corre.


(este texto está em revisão - todos os direitos reservados)


segunda-feira, setembro 10, 2012

O algoritmo de compressão

Nesta questão toda da pseudo crise, em que somos fustigados pela inépcia e cumplicidade canhestra e eventualmente involuntária dos políticos, ao serviço de uma política que já só serve o capitalismo financeiro de meia dúzia, o que mais me impressiona é o coro de vozes que acham que temos de penar estas penas porque "vivemos acima das nossas possibilidades". Há aqui uma assunção de uma culpa quase bíblica. Fomos marcados por essa culpa difusa de um pecado que já ninguém sabe qual foi mas que parece subcutâneo! É um argumento tipo bomba de neutrões. Da direita a alguma esquerda todos utilizam este argumento como se nem sequer de demonstração carecesse. É um verdadeiro axioma. E, basta a sua menção para uma grande parte do povoléu se calar embaraçado, com pudor e vergonha ela própria envergonhada. Activada esta culpa primordial, Pimba!Ao fim ao cabo "todos" fomos aos bancos pedir crédito para férias em Porto Galinha, "todos" andámos a trocar de carros e de casas de mobílias de arquitectos à conta de uma verdadeira luxúria credíticia. Uma lascívia de consumo sem limites. Os políticos, "coitados, foram apenas na mesma onda que de resto nos varreu a "todos".Perdão. Eu nunca consumi o que não era meu. Mas mesmo que tivesse caído em tentação porque é que agora haveria de me envergonhar? Em boa verdade quer tivéssemos ou não consumido a riqueza a criar nos próximos seis séculos, individual ou colectivamente, na realidade assumimos um ar constrito e absorvemos uma "postura" de grande embaraço e cedemos ao calvinismo nórdico que nos aponta os dedos ameaçador e reprovador. Tudo é merecido, tudo é para suportar. Ora há aqui falácias terríveis. A primeira, é a de que o interesse neste consumo imoderado foi de certo capitalismo financeiro inebriado com teorias de crescimento infinito que a certa altura já incapaz de gerar valor a partir de realidades palpáveis se pôs a "inovar" e a inventar formas de criar dívida a partir do que "haverá de ser"! E, quando nos pomos a especular e imaginar sobre o futuro bom... não há limites não é verdade. Podemos vender opções sobre a produção futura de bananas na Guatemala em 3056! E, existindo dúvida legítima sobre essa produção podemos vender "seguros de crédito" sobre a dívida contraída para comprar tamanho delírio. Como o próprio capitalismo financeiro "subprime" sabia que isto era um manhoso castelo de cartas tratou de refinar estas verdadeiras artimanhas de conto de vigário sob formas pseudo matemáticas e mascaradas de "sofisticação" misturando dívida irrecuperável com dívida legítima e criando acrónimos que iludiram, justa e deliciosamente os alegados "especialistas". Ora chegado a um ponto em que alguém perguntou quanto do crédito total poderia imediatamente ser liquidado sobre valores ficcionados (no caso sobre as hipotecas nos Estados Unidos) a coisa descambou. Os bancos dada a sua natureza (de nunca poderem ter o valor dos depósitos em cada momento disponível para saque) habituados a correrem riscos em demasia a que as "autoridades reguladoras fizeram cumplicemente vista larga, afundaram-se. E, ordenaram aos políticos que afectassem os dinheiros dos contribuintes em seu benefício de modo directo e sem disfarces. No meio deste descalabro saíram triunfadores bancos ingénuos e bancos deliberadamente desonestos. Depois, a falácia genial, em face da contracção de dívida pública a níveis inusitados para ser aplicada nestas operações de salvação dos merdas que nos lixaram, os merdas ficaram "alarmados" com o nível de dívida pública necessária para os salvar. E compères do sistema resolveram "notar" o alarme dos facínoras. Aumentaram o "alarme" e ... Disseram-nos que somos nós os causadores da aflição porque elegemos os políticos seus amigos. Formidável não? O espantoso é que basta a enunciação das palavras "todos fomos beneficiados" "todos vivemos acima das nossas possibilidades" "todos andámos a viver à tripa forra" para que a esmagadora maioria de nós se tenha deixado anestesiar pela conversa mole e cínica destes políticos de treta que nos afogam em demagogia e cobardia ... E se recolha à placidez do lar para aí resmungar com receio de ser ouvido pelo vizinho... Somos afinal o quê? Eu por mim não pedi nada. Eu por mim não me endividei para além do que ganho. Eu por mim não deixei de criar riqueza. Eu por mim não suporto mais estas medidas. Eu por mim não quero "oferecer" mais o meu esforço aos chupistas que se riem de nós. Eu por mim não compreendo como é que vocês se sentem culpados...