terça-feira, dezembro 17, 2019

Possivelmente

E, aparentemente o desejo de um mundo avançado e cosmopolita e sofisticado e igual e com felicidade a rodos para todos chocou de frente com a realidade. Nos destroços do embate descobrimos afinal um sem fim de "identidades" vítimas da ... natureza humana. E descobrimos que o tribalismo e apelo dos iguais, o sentimento de protecção (real e imaginária) da horda, o medo do Outro, a inveja (até como motor da Economia...), o orgulho no grupo de pertença, a agressão como mecanismo de defesa e de coesão,  o ódio como regulador tão forte quanto o inatingível amor pelo próximo são, afinal, traços mais perenes que assomam mal o horizonte aparece não tão promissor como nas fantasias positivas, e as expectativas se diluem em rancor e azedume. Isto é, o eterno retorno ao ódio sempre que a expectativa deixa de ser positiva e é mais fácil desconfiar e desmerecer  o estranho entre nós porque o pão escasseia para todos e o circo tem a tenda a arder. Sem pão e circo decente as diversas tribos refugiam-se naquilo que deu certo desde sempre e maledizem um mundo diluído em que todos se misturam com todos e todos tem o mesmo valor. A perda de esperança (em particular daqueles que se acostumaram a possui-la) conduz como sempre a corredores sombrios.

De um lado, as "vítimas" vitimizam-se ainda mais e organizam a sua raiva. Do outro, o egoísmo cerra fileiras com e no grupo de pertença e organiza o ódio sempre latente. Entrementes a tecnologia difunde de modo absurdamente rápido e enviesado todos os preconceitos e maledicências com inusitada eficácia e velocidade, validado de modo autopoiético as profecia auto cumpridas que cada grupo venera. E, difunde de modo eficaz, porque quer o preconceito quer o delírio aparecem e mostram-se arrogantemente mascarados de virtudes e de superioridade intelectual. E, aparentemente conduz-nos este confronto a uma situação de impasse e de desiquilíbrio que carece de resolução (como de resto é usual).

Estou em crer que esta situação, presente, se deve a um movimento de concentração de riqueza a ritmos e escalas eventualmente "inovadoras", que comprime ou faz desaparecer as classe médias (veja-se a "proletarização" de médicos e professores apenas como mero exemplo) e esmaga o mundo num contexto de pobreza remediada, mitigada por mecanismos de controlo social (como o euromilhões e a bi semanal ilusão de que é possível escapar, e a volúpia do consumo a preços baixos de uma economia a caminho da uberização total) mas que a prazo soçobrarão.

Estou em crer que a coisa piorará. Que a massa se tornará cada vez mais pobre e por consequência mais susceptível de aderir a quaisquer ódios que forneçam esperança ou ilusão de esperança senão de solução pelo menos de satisfação sádica porque os "outros" ficarão pior que "nós".

A lógica de funcionamento da sociedade, por acção do poder (legítimo ou ilegítimo), premeia, cada vez mais, os que estão no topo da riqueza (embora uns caiam e outros assumam a preponderância, renovando-se mais do que parecem estas elites com poder económico) criando vínculos de submissão da classe política, que legisla e actua para a protecção de uma riqueza com origem no casino financeiro predador, ou na decisão administrativa que concede o uso de recursos cuja titularidade resulta de regras "porque sim" como o uso do solo e do subsolo, da água e do vento e do sol, ou por vezes, e não tão raras como isso, com base no mérito e na inovação sem, portanto, nenhum pecado da acumulação primitiva marxista (embora estes sejam sempre olhados com desconfiança pelos velhos ricos e pelos seus herdeiros e pelos políticos que à esquerda e à direita os invejam) mas esta lógica conduzir-nos-á a uma situação que vai carecer de resolução. A distância entre estes seres cuja fortuna é incomensurável à escala do quotidiano vulgar, e os que se levantam para ir para o escritório no centro (repare-se que já nem menciono os que se levantam de madrugada para ir lavar os escritórios dos segundos...) começa a ser tão grande que a coisa um dia terá de quebrar.

À medida que a desigualdade se potenciar em escala que parece exponencial, os que ficam em baixo (quase todos) começarão, finalmente, a olhar para cima e para os políticos serventuários da situação. Depois deste período em que, os debaixo, se odeiam entre si e se acusam das maiores vilanias e comportamentos soezes (potenciados pelas fake nesws espalhadas pelas redes sociais), como está a acontecer agora, um dia a exploração das identidades e dos seus conflitos (entre pretos e brancos, entre transexuais e Terfs, entre Benfica e Porto, vegans e comedores de carne, entre historiadores e sociólogos, entre marketing e finanças, etc...) será insuportavelmente imbecil e estúpida e as pessoas finalmente, frustradas pela inutilidade destes pequenos ódios, virar-se-ão para cima e para a riqueza acumulada sem explicação razoável (e o razoável é uma relatividade). Esta viragem não acontecerá, possivelmente, antes de alguns destes ódios terem provocado tragédias absolutamente desnecessárias e sem ganho nenhum relevante. Suponho, numa área que me toca, que a ciência sofrerá imenso nos próximos tempos, em que em vez de modernismo Leibnistziano, caminhemos para um, e ao som de um, activismo centrado em falácias ad hominem e das mais fáceis. (Provavelmente os OK Boomers brancos hetero mesmo que de esquerda serão shut down e com eles os departamentos de STEM entregues a epistemologias pós esclavagistas e/ou ontologias feministas. De seguida os departamentos de estudos feministas serão expurgados das lésbicas que continuem a teimar que uma mulher tem ovários. E por aí ...)

Mas depois destes devaneios, a esquerda terá de encontrar um caminho de volta a Newcastle. Se não encontrar, ficará perdida no cosmopolitismo artificial de Londres e desaparecerá engolida na impotência e no caos gerado pelas lutas fraticidas de grupos e subgrupos folclóricos que se querem apoderar da linguagem acreditando que aquele que controlar as palavras controla a realidade.  (A realidade de facto é definida (não controlada) por palavras, sempre o foi, a questão é que ninguém controlará as palavras, as conversas serão sempre como as cerejas). A realidade rir-se-á. Esta esquerda insuportavelmente totalitária e/ou delirante não será  tolerada. Será dizimada e substituída, potencialmente,  por uma direita abertamente xenófoba, racista e misógena que fornecerá "tranquilidade", "ordem pública", e protecção musculada a quem possa pagar o preço.

O problema irresolúvel da esquerda, parece ser a incapacidade de compreender o valor evolucionista da natureza humana (sim é tóxica). E de esperar por Godot na esquina da construção do "homem novo" e "perfeito" que nunca virá.  Porque esse "homem novo" parece um conas de sabão sem drive, sem paixão, sem inquietação, sem angústia sem pulsão. Um palhaço que viveria em contemplação e sempre satisfeito com o seu quinhão que lhe toca no mundo comunista e sem problemas para equacionar e se esbardalhar e estrafegar neles. Um panhonhas incapaz de invejar, de se roer para ser melhor, sem desafios, sem tensão e sem tesão pela vida.

O problema da direita alternativa à direita totalitária e serôdia é semelhante. Em vez do "homem novo" acredita que o "homem velho" criará o "Mercado perfeito" . Um mundo em que o mercado premiará (sempre e somente) o esforço honesto e diligente. O mercado escolherá sempre a melhor solução. A maior eficiência. Desde que se removam os políticos corruptos e os malfazejos regulamentos que cerceiam e castigam a alma e a inciativa humanas. Os seres imperfeitos criarão de modo auto organizado uma sociedade perfeita. E satisfeita esta premissa a compaixão tomará conta dos corações dos homens (todos de boa vontade) e os que forem menos favorecidos pela genética ou pela circunstância aleatória da vida encontrarão na caridade dos demais a mitigação (eventualmente digna) do seu infortúnio.

Lamento mas nem uns nem outros são realistas. O homem novo e o mercado perfeito são utopias. Meras utopias. Uma conduz a um mundo monótono, sem paixão nem pulsão  e insuportavelmente repetitivo. Outra conduz a um mundo igualmente mecânico e de mera optimização de funções de investigação operacional em que só se tem valor porque se resolvem algoritmos. A natureza humana que nos trouxe até aqui é incompaginável com estas tretas. A inveja e mesquinhez tem um valor insofismável para a evolução da espécie. E essa realidade não permite nem a  criação de pureza contemplativa e auto-satisfeita nem permitirá a eficiência máxima total do fair trade. O ser manhoso procurará sempre o short cut o easy way out (é essa uma das origens da criatividade quer se queira quer não).  Lamento mas quem quiser triunfar (no contexto presente e de médio prazo) fornecerá aos esmagados da classe média uma fatia grande da riqueza acumulada. (Esquerda ou direita terão de ir ao pote ...). Inexoravelmente a riqueza acumulada em dimensões obscenas e incompreensíveis será redistribuída (há um momento em que odiar e invejar o outro que é fundamentalmente pobre como nós se torna inútil e sem valor instrumental).  A mal por certo. E, depois, será necessário encontrar um equilíbrio entre a liberdade de criar mais, de ganhar mais, sem que ninguém meta o bedelho, e a necessidade de amparar aqueles que efectivamente necessitam de amparo ainda que circunstancial e efémero. Um equilíbrio entre o Estado social (de solidariedade forçada) e o capitalismo utópico do mercado perfeito (que requer indivíduos que se sentem responsáveis por si próprios). Um equilíbrio instável mas imperativo. Que não premeie a corruptela da negociata manhosa nem premeie o "esquema" de aldrabice do subsídio proxeneta do esforço dos demais.

E, para já lamento pelos meus amigos de esquerda que honestamente acreditam que são melhores pessoas, que possuem uma superioridade moral e estão ungidos, mas quem me parece mais capaz de executar e oferecer este equilíbrio aparenta ser uma direita tolerante sem complexos e sem vínculos à religião, à tribo, e à corporação.

Aguardemos pelos próximos capítulos. 

segunda-feira, novembro 04, 2019

Para que serve a ciência então?

A propósito de uma tese de doutoramento de um político que alegadamente explora o azimute contrário ao sentido da orientação actual do dito político ( do que defende e da forma como defende) vi expendidos os argumentos mais extraordinários.

Em primeira instância, e arrumando já um aspecto não interessante mas que gera ruído, vi a desqualificação da fonte do alegado ataque à coerência do político. A Câncio. Pessoa que não me é nada simpática e a quem a pedrada "ao outro não viste mal na licenciatura por fax ao domingo" acerta sempre. A falácia ad hominem é claríssima e tosca. É-me indiferente a razão, a imputação e atribuição de intenção à mensageira. Pode ter sido tudo o que quiserem, o trabalho que ela fez vale. E muito. E o dispêndio de energia neste tipo de interacção, infelizmente tão típica dos dias que correm releva e revela apenas a mediocridade de quem cai na falácia. Lamento mas quem chafurda nesta lama não é melhor que a gaja a quem acusam de ir para Formentera e não desconfiar da luxúria, opulência ou apanhada nas escutas a aconselhar não pedir factura para esconder a coisa. Temos de ser melhores que isto.

Indo ao essencial. Vi inúmeras justificações para a separação da tese e da vida. Uma coisa, li espantado, é a ciência, e o rigor científico, e a adequação aos canones da academia, outra coisa é a vida real. E, nessa sequência, nada obriga um dever de coerência entre o que se "investigou", a "prova empírica" recolhida e a necessária conclusão teórica ou doutrinária e a posterior utilização desse conhecimento ou mesmo o seu repúdio na vida corrente, dita "real".

Em primeira instância esta desvinculação conduz-nos a uma armadilha impensável. A ciência como mero acto ritual. Nas palavras dos que defendem a superioridade da legitimidade e mesmo da inimputabilidade do cientista, a ciência como acto de produção de artefacto cultural. Julgado o valor desse artefacto pelos "pares" e sem que a sociedade (ou os contribuintes) que pagam todo o circo tenha que meter o bedelho no assunto desde logo porque "não são da área". Lamento. Esta extraordinária enormidade conduz-nos a uma situação em que a ciência é aquilo que o cientista quer que seja e diz que é. Validado pelos seus colegas e amigos cm que troca de forma obscena citações mútuas num perpetuo e descarado sistema de you scratch my back i'll scratch yourse. Um sistema autopoiético portanto.  Leva-me esta negação da modernidade, muito fundada na asserção de Latour "we have never been modern" (que está longe de querer dizer o que lhe atribuem) à abertura de portas de toda a sorte de merda pós modernista que nem sequer travesti de ciência é. Que culmina com meros artefacto retóricos sem critério de validação plausível e nem sequer se trata do problema que Godel nos descreveu na sua indecidibilidade. Trata-se mesmo de merda que não é, não foi nem será nunca ciência. Mesmo que para elas existam comissões de avaliação da A3ES. Não, a ciência não tem de ter apenas um carácter utilitarista como gostam de acusar os que defendem que "as universidades não podem ser os laboratórios nas traseiras das empresas" avançado o argumento do "economicismo", mas a ciência tem responsabilidades cada vez maiores em tempos de obscurantismo, que curiosamente provem, em grande modo, das próprias salas de aula das universidades...  Mormente de ser Ciência. Replicável. Escrutinável. Avaliável. Sujeita a dissensão e discussão. Mesmo que em ultima análise cheguemos ao paradoxo de Freeman Dyson e só a Física preencha todos os critérios que ele estabeleceu.

Não faço a mínima ideia se a tese do Ventura é desta estirpe, primeiro porque é na área do Direito que pode ser tudo mas nunca será ciência. Não vou perder tempo com uma coisa que não é validável nem pelo verificacionismo (da modernidade) que nos conduziu a vários becos sem saída, e que em geral à segunda página também não resiste a nenhuma heuristica negativa de Popper (que estatuiu o que deveria ser o pináculo da pós modernidade). Isto é colapsa a um mero exemplo de excepção que qualquer canalizador é capaz de lucubrar.  Mas a  desonestidade intelectual é uma porra. Mesmo no Direito ou nos estudos etnográficos de folclore. Se, hoje, o Ventura não concorda com o objecto ontológico que investigou, com o método epistemológico, ou com as conclusões, ou se acha que o domínio a que aplicou o estudo original da sua tese não é isomórfico do domínio em que hoje opera, ou o domínio onde são expendidas as críticas que lhe foram dirigidas deve clarificar isso com argumentos sérios e atendiveis. O que não pode é dizer que não tem nada a ver o cu com as calças. Não sei se o fez porque não li a entrevista e desconheço o que disse na íntegra. Mas os excertos que li das citações da tese e da entrevista são avassaladores.

O que não posso admitir é que se possa dizer, na alegada defesa da sua incoerência, que quem faz investigação numa área diga que pode discordar dela depois na vida real. A vida real é a ciência a sério. É nela que deveríamos depositar a esperança para que dela saíssem soluções firmes e exequíveis para os problemas que enfrentamos a cada momento. O valor da ciência reside precisamente na possibilidade de explicação do mundo e na perseguição incansável da verdade. Ainda que a cada momento essa explicação possa ser ilusória. E substituída a explicação por cruel oposição de orientações ontológicas adversariais e melhorias epistémicas. Novos dados, novas teorias podem causar o abandono de velhas explicações. O que não podem justificar é lavar as mãos. A justificação para investigar e abocanhar recursos que possuem usos alternativos tem de ser fundamentada em actos de honestidade intelectual e no potencial de benefício, ainda que distante e mesmo pouco visível, para a sociedade e para a nossa vida (eco)comunitária.

Se por absurdo alguém começar a investigar a ligação causal entre uma molécula e um efeito negativo para a vida humana, gastando dinheiro dos seres humildes que andam a pagar impostos e a amochar pelas seis da matina no barco do Barreiro, conclui que há um efeito e recomenda medidas na sua tese por exemplo de saúde pública, depois muda de emprego e vai para um sitio onde o "paradigma" é diverso e passa a dizer que as recomendações que fez na tese não tem nada a ver com a vida real, esta pessoa tem um nome simples, é uma puta (independente do género).

Dito isto tudo sobre o valor social da ciência (exige-se apenas aos STEM o resto é ... literatura moderna) acredito piamente que isto não passe de uma minudência. Quer o Ventura quer os seus inimigos continuarão infelizmente a explorar a teoria de atribuição causal da Psicologia Social com evidente sucesso. O futuro parece-me negro no horizonte e vislumbro poucos raios de luz.

quinta-feira, setembro 26, 2019

Muito cansaço

Como é que poderemos exigir aos nosso filhos, aos nosso alunos, aos nosso concidadãos que sejam boas pessoas? Que cuidem do ambiente. Que se comportem de modo íntegro e digno. Que paguem os impostos devidos ainda que estejamos a caminho de uma situação de esmagamento fiscal. Que sejam solidários com os menos bafejados pelas circunstâncias. Que sejam tolerantes para com os shortcomings que todos exibimos. Que sejam tolerantes para com os diferentes e intolerantes para com quem apouca e exclui os que são diferentes.

Confesso que estou cansado. A balcanização de todo o espaço público no matter what the subject and the issue are é claustrofóbica. É insuportável.  E o acantonamento de aprovação do despudor aberto, exuberante, quase obsceno do que se vai passando, quando a autoria da façanha é "dos nossos" é demasiada.

Imaginem que o país era um desses recantos do norte da Europa onde alegadamente a ética (nem sequer republicana...) é levada, ainda, bastante a sério. Imaginem que um ministro tinha enviado a um deputado do seu partido uma mensagem em que confessava que sabia de uma coisa inacreditável, criminosa, impensável quase surreal. Mas que, e avisava na mensagem, se dispunha a mentir ao parlamento. A ocultar o que sabia. A utilizar a usual langue de bois para mistificar as coisas, os factos, as datas, as circunstâncias. O habitual portanto (mas entre nós).

Por certo acreditam que nesses países mágicos do norte estas duas criaturas sofreriam os danos adequados ao seu comportamento. E no caso do ministro a cadeia seria inexoravelmente o destino. No caso do deputado no mínimo seria retirado do convívio social e do plano político.

Pois como é expectável, por aqui no burgo, o ex ministro possivelmente sairá incólume. Depois de um pequeno período de nojo será nomeado para outro cargo mais compensador do ponto de vista monetário. O deputado poderá continuar a exibir os predicados de virgem ofendida. Ambos serão louvados internamente pela sageza da sua Omerta. E, em geral, com a disseminação pública da mistificação pelos serviçais e putas ao serviço.

Começamos por fechar os olhos às cábulas manuseadas de modo canhestro. Viramos a cara ao desfalque na receita da venda de cervejas e sandes de couratos na festa da aldeia ou da faculdade. Encolhemos os ombros à escolha da prima em detrimento da candidata sem cunha que tem mais óbvias capacidades. Achamos "natural" a promoção do graxista lambe cús. O favorecimento de familiar do colega de governo, desde que disfarçado entre outras duas propostas combinadas num tranquilo repasto nem sequer escandaliza o conselho superior da magistratura que tratou de caucionar estas salutares práticas.

Acabamos no pântano do outro manhoso que fugiu. Num manicómio a céu aberto.
Numa estrumeira em que o pilar essencial da esperança na remissão da porcaria, a Justiça, não estranhamente escolhe a antevéspera de um acto eleitoral para despachar uma acusação, abrindo, necessariamente, lugar à suspeita e, yet again and again, de agenda escondida, de frete, de tudo menos aquilo que necessitamos de uma Justiça que não sejam parceira voluntária da chafurdice.

E o desencanto sobrevêm. Uma angústia plácida e já quase serena de quem sabe que só sobeja histeria, crendice e imbecilidade.






Um grande bem haja para todos os que diariamente despejam mais merda na estrumeira. 








segunda-feira, setembro 09, 2019

The Age of Aquarius


Há poucas décadas proliferava pelo mundo um optimismo assente na esperança que a ciência, a tecnologia e novos estados de “consciência colectiva” nos transportariam para uma espécie de paraíso na Terra. O fim, talvez exagerado, da ideologia colectivista e determinista do comunismo soviético, abria fronteiras de liberdade individual e de transformação social com a resolução de velhas opressões: de raça; de género; de orientação sexual; de classe; de acesso à educação entre outras.

O consenso social democrata, e o seu primo, o marxismo de paladar mais europeu e selecto,  repousavam nas universidades, em particular nos departamentos de linguística onde eram desenvolvidas utopias de mais “homem novo”, agora um ser de sexualidade fluída livre de preconceitos, do passado e das amarras materiais. O welfare state  morrera, mas felizmente o dinheiro barato e o crédito universal colocavam o consenso de Washington e o mercado (ou seja o capitalismo) ao serviço de todos. E, todos ficariam contentes. Liberdade  económica e liberdade de costumes. Uma sociedade livre de seres livres e iguais e, próspera, com seres ricos como Gates que achavam que os impostos deveriam ser mais altos e financiar uma visão mais igualitária. 

Mas algo correu mal. As elites iluminadas e frequentadoras de Davos e de outros lugares prenhes de panache, categoria e charme, alimentaram e alimentaram-se de uma ilusão que deixou na penumbra os “deplorables”.  E os deplorables vêm em várias tribos, alguns até de colete amarelo. E do arrumo que era uma sociedade com classes, mas poucas e sem complexidade assinalável, ao fim ao cabo eles e nós são categorias simples, damos por nós submersos numa cacofonia de vozes agressivas e polarizadas. Infelizmente o mundo é hoje uma imensa balcanização de tribos de consumidores e de estilos de vida que não parecem acomodar-se aos padrões desejados pelos próceres da engenharia social dos departamentos de estudos de género nem  das business schools.

O controlo social, que no fundo todos desejavam, perdeu-se num mar de tecnologia que proporcionou voz e espaço social a toda a sorte de pessoas. Ampliando até ao delírio as fantasias e os preconceitos de todos. E, em vez de liberdade de costumes temos hoje um espaço social cada vez mais hostil, agressivo, anti-científico em que tudo se dilui e relativiza. Pior, a riqueza gerada foi também presa fácil de gente mais criativa nos processos de corruptela e de invenção de esquemas de ponzi, a que a banca se acabou por dedicar de modo bastante claro. E aqui estamos,  com a noção de que a evolução do paradoxo formulado pelo biólogo Edward Wilson; temos emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologia dos deuses, não parece ser a mais promissora. 

As elites, sem surpresa,  de ambas as aisles do political spectrum, reagem com sugestões de supressão de liberdade que já conhecemos no e do passado. As divisões sociais escancaradas e muito visíveis remetem-nos igualmente para tempos sombrios do passado.   Dark times ahead.

quinta-feira, abril 11, 2019

A culpa de ter partido, a raiva de ter ficado e a saudade de não voltar

Há quem diga que Portugal sofre de uma doença bipolar. Seriamos, portanto, possuidores de uma natureza maníaco-depressiva, oscilando, sem realismo, entre a fuga megalómana para o prognóstico de realização imperial e, o soçobrar, o colapso colectivo, que se afunda no diagnóstico auto-punitivo de tragédias anunciadas a que se segue um desejo de regeneração que nunca é concretizada. Ora o problema parece-me ser outro.

Parecemos mais um povo infantilizado. Eterno adolescente imberbe, cheio de angústias e de crises de auto confiança. Inseguro e incapaz de largar de vista a mão do pai idealizado contra o qual, paradoxalmente, se quer afirmar. Típico dos adolescentes, vivemos em eterna auto perscrutação, numa zona nebulosa e ambígua, ansiosos e hesitantes sobre os desígnios a perseguir e incertos quanto às acções a executar.

Oscilamos, de facto, entre a amargura do falhanço antecipado e a euforia irrealista e inebriante de um futuro radioso e grandioso. Em qualquer dos casos, em termos absolutos e definitivos, para além de qualquer ponto de equilíbrio redentor. Por vezes, apresentam-nos cheios de manhas e de mecanismos de defesa, somos ardilosos de modo um pouco cobarde, e sentimo-nos inferiores. Outras vezes, cheios de sonhos de importância perene e esmagadora, somos arrogantes e megalómanos e sentimo-nos superiores. No fundo, como qualquer adolescente à procura do seu lugar no mundo e do seu papel.

Um povo adolescente eternamente à procura do pai ideal que alumie o caminho a percorrer e sempre a rejeitar qualquer pai que se afigure possível. Um povo prisioneiro, há séculos, deste paradoxo. Sempre em busca de um líder/pai carismático idealizado que nos exima de nos maçarmos com a angústia do trabalho e do pensamento e a quem possamos transformar em bode expiatório para a nossa própria inépcia e preguiça. Um povo que teme a incerteza tanto, que “compra” qualquer certeza ilusória. E que se acostumou a estar naquela zona cinzenta em que se pode atribuir às circunstâncias e a terceiros a “culpa”, por coisas que, de outro modo, poderiam ser corrigidas como parte de processos de aprendizagem e crescimento. Um povo que por vezes cede à impotência, disfarçada pelo marialvismo e pelo misticismo barato. Não raras vezes, consumimo-nos na cobardia de não denunciar pela frente aquilo de que nos entretemos a fazer a dissecação em voz baixa, sempre lestos a condenar, antes de prova irrefutável, elaborando longuíssimos e amplos juízos de intenção e de valor. Um povo demasiado habituado a não tomar decisões e a assumir a responsabilidade pela escolha produzida. Um povo ignorante que se presume sabichão. E choramingas. Sempre coitadinhos.

Seremos antes um povo de indivíduos fracos, incapazes de relacionamento de iguais, ansiando pela validação e afago do chefe? Mas somos mais um povo sem individualismo, porque, aparentemente, a nossa individualidade é apenas uma mera expressão da diferença percebida ou desejada em relação ao outro, e não base de autoconfiança e crescimento próprio. Antes pelo contrário, dependentes do reconhecimento do e pelo outro, que contudo nunca é suficiente, porque é sempre relativo, pedinchamos constantemente atenção e carinho que depois não aceitamos porque somos incapazes de assumir uma relação igual em que tenhamos de nos dar também. Preferimos pois, a adulação distante em lugar da emoção genuína. Basta ver como por circunstâncias e ocasiões várias, sempre que há eventos, cá dentro ou lá fora, mandamos repórteres perguntar aos estrangeiros de modo retórico: “- Então o que diz de Portugal? Somos um povo simpático e que se desenvolveu imenso, não acha?” “Não acha que podemos ser campeões do mundo?”
E o pobre turista apanhado desprevenido lá balbucia, com um sorriso de perplexidade, um “pois”...

Incapazes de enfrentar o confronto com o outro. De dizer frontalmente aos milhares de “protagonistas” da ausência de ideias e de estratégias, que é tempo de arranjarem roupas porque, para além de nus, vão monótonos e saloios...

Mas enfim, sempre temos um solzinho que faz inveja aos nórdicos e um tinto de Pias que é um espectáculo... no fundo no fundo para quê mudar se virá sempre alguém resolver os nossos problemas por nós... hã?

José Manuel Fonseca


terça-feira, março 12, 2019

A psicologia é de esquerda ou de direita?

A Psicologia é de esquerda ou de direita?  

Vivemos tempos únicos. Comunistas defendem a constitucionalidade da eleição do Donald. Gente de direita muito patriótica revela animosidade para com os serviços secretos do próprio país.  Gente de esquerda manifesta-se armada do relatório da CIA para “provar” a ligação do Donald à Rússia. Gente de direita pretende acabar com a Nato. Gente de esquerda defende o euro.   Existe uma esquerda para a qual se da lista das 8 pessoas que detêm mais riqueza do que metade da população mundial, constassem 4 mulheres, 6 pessoas de cor, 2 transsexuais, 2 assexuados, 2 lésbicas , 2 gays e 7 muçulmanos o problema da desigualdade económica, aparentemente ou não se colocava, ou eram assunto de somenos.  Existe uma direita que pretende erguer muros em todo o lado acabando com o comércio livre, bandeira pela qual a direita soterrou o consenso social democrata do welfare state e impôs o consenso de Washington.  Existe um feminismo para o qual um homem muçulmano seguidor convicto da sharia possui um constrangimento cultural que o torna incomparavelmente superior a um misógino branco e eventualmente protestante. Existe uma direita que acha que proibir uma mulher de vestir um fato de banho é um acto de afirmação dos valores republicanos. Existe uma esquerda que acha que os homossexuais no Iraque devem aguentar-se à bronca e que as mulheres no Irão tem de ter paciência mas que aqui no ocidente é um escândalo que não existam quotas para intersexuais nos concelhos de administração das empresas cotadas na Fortune 500. Existe uma direita que acha que os valores universalistas que saíram do Iluminismo francês e escocês são uma falácia e que as teses do Duginismo[1] de que a cultura local se deve sobrepor às declarações universais de direitos e acabar com tribunais penais internacionais e possivelmente com todo o direito internacional. Existe uma esquerda que acha que os valores são universais mas que os povos libertados do jugo opressor do imperialismo podem aplicar as suas tradições mesmo quando estas se oponham aos valores da revolução francesa. Existe uma direita que desconfia das vacinas como conspiração das grandes multinacionais farmacêuticas para aos serviço da ordem secreta dos Iluminati controlar a população mundial e estabelecer a Nova Ordem Mundial que está a ser estabelecida desde o século XVII. Existe uma esquerda que desconfia das vacinas como conspiração das grandes multinacionais farmacêuticas para aos serviço da ordem secreta dos Iluminati controlar a população mundial e estabelecer a Nova Ordem Mundial que está a ser estabelecida desde o século XVII. Existe uma ciência económica direitista cada vez mais matematizada que rende previsões catastróficas para cada novo cenário político cada vez mais surrealista que o anterior. As previsões claro está são arrasadas pelas novas fronteiras do possível. Existe uma economia de esquerda que modeliza com elegância a criação de riqueza em ciclos virtuosos que lamentavelmente nunca são experienciados pela população do Feijó que se levanta por volta das seis da matina. Existe uma psicologia de esquerda que criou espaços seguros e trigger warnings em que ursinhos de peluche ajudam a criar um mundo em que ninguém sofre micro-agressões e todos vivem felizes num útero protector. Existe uma psicologia de direita que nos faz crer que se pensarmos sempre positivo a nossa vida se alcandorará a uma torre onde nos servirão leite e mel. Malfadadamente o comum dos mortais persiste em se aborrecer com o metro cheio e com menos carruagens e com o aumento do preço do gasóleo.



[1] Alexander Dugin cientista politico russo alegadamente um dos inspiradores da visão euro-asiática russófila que inspira o Putin e parte do que se denomina alt-right norte americana.