quarta-feira, maio 25, 2011

Aqui e agora como estrutura única de existência

tal como as demais pessoas dotadas de emoções fiquei estarrecido com a violência insana de duas raparigas sobre uma terceira mais nova, para gáudio de um número indeterminado de adolescentes ou jovens adultos que não puseram termo às agressões, pelo contrário, incentivaram-nas e utilizaram a filmagem para divulgação como se a violência fosse um espectáculo apreciado e apreciável. Vi uma uma página do facebook onde, alegadamente, se desfiam comentários de amigos e protagonistas da situação. Um jornal publica um post de uma das agressoras a vangloriar-se e a prometer que foi só o "aquecimento".

Saem a terreiro resmas de analistas especialistas em diversas áreas. Intervêm a polícia e o ministério público, não sem a inevitável, inexorável, inelutável, inadiável lamúria sobre os meios. O ângulo de análise vai da perda de autoridade dos professores, do facilitismo do ensino, da ausência do "ensino" da cidadania, da demissão dos pais, da influência dos mídia, da violência dos video jogos, da rasquice desta juventude (como se a violência entre bandos e entre garotada fosse uma coisa iniciada anteontem...) da dissolução de valores, do desemprego, da ausência de perspectivas, de "terem" tudo, de não terem nada, da profilaxia do par de estalos em devida altura não ter sido aplicada. A complexidade do produto de todos estes factores, confesso, leva-me a rejeitar análises simplórias, lineares. Nós somos confrontados com um episódio assaz revoltante e brutal, mas, que faz parte de uma narrativa, para usar um conceito ultimamente popularíssimo.

A mim o que me preocupa é, justamente, a possibilidade de ausência de narrativa destes e nestes miúdos. De viverem apenas na circunstância. Numa dimensão empobrecida denominada aqui e agora. Sem passado e sem futuro. Sem dimensão teleológica. Sem expectativa. Sem espaço de maturação para avaliação do bem e do mal. DO certo e do errado. E, naturalmente apenas com o incentivo do grotesco, do exibicionismo. Que triunfou e que nós adultos validamos todos os dias com as nossas escolhas. Quem inventou a sociedade do espectáculo tem agora 60 ou 70 anos. Quem fez triunfar a insignificância e a violência enquanto entretenimento não foram estes miúdos. O Facebook ou o Tube não causam nada disto. São um mero veículo que "facilita" o que andou décadas a marinar. Quem ligou o lume não foram estes garotos.

E que justificação damos para este triunfo? O mercado. O "mercado" nas sua sabedoria das multidões "quer" ver coisas destas. Até porque depois podemos todos fingir-nos chocados e desempenhar o papel de eunucos e virgens vestais e sair mais reconfortados, ratificados e reforçados na nossa superioridade moral. Temos sempre a capacidade de convocar em nós a fantasia idiota que no nosso tempo não era assim. Ou pelo menos havia mais "consciência". Mas não havia. Realmente há décadas que andamos atrás de quimeras e do efémero. Não fomos, não somos assim tão particularmente diferentes, mesmo se o léxico é, aparentemente, superior. Há décadas que andamos a permitir que o sentido de "comunhão" e de comunidade seja substituída pela exibição boçal do supérfluo, que o respeito pelos mais velhos foi substituído pela adulação da ilusão de juventude eterna. Podemos mudar de canal agora e ver mais uma série da Fox ou de outra porra qualquer com vampiros benignos que se aliam a alígenas que querem ajudar a salvar as focas de Caminha e os cães abandonados do Tramagal.

sábado, maio 14, 2011

Mentiste-me Pai

Faz hoje já não importa quantos anos que partiste. Disseste-me uma vez, em que à beira do monte, me fizeste sair do carro e tapar os olhos, que o que eu via, naquele momento de olhos fechados, era o que me deixarias quando morresses. Nada. Que me darias tudo o que te fosse possível em vida. E deste-me muito mais do que seria razoável. Deste-me vários mundos Pai. Deste-me exemplos. Deste-me explicações e longas caminhadas em Monsanto em que me falavas de livros e de histórias fantásticas. Deste-me conselhos e amparo quando eu duvidada de mim próprio. Disseste-me que o teu Pai te tinha dito aquela frase que eu já passei aos teus netos que "há dinheiro que não tem o nosso nome pelo que não devemos aceitá-lo". Mas afinal, Pai, mentiste-me. Depois de morreres deixaste, afinal, muito. Deixaste-me um dor que dilacera o coração, uma saudade que me mareja os olhos de lágrimas ainda hoje. Que corta a garganta como arame farpado. E deixaste-me tantas boas memórias. Como aquela em que tu e o Gonçalo, então com dois anos, se desataram a rir da minha fúria por terem desarrumado mais de seiscentos cd's que estavam espalhados pelo chão da sala. Deixaste-me afinal tanto. Nem tu podias imaginar o peso da herança que afinal acabaste por me deixar. E as saudades, Pai, são tantas.