O paradoxo da
Participação …. A transformação do
espaço social em círculos de “adeptos” e a quasi eliminação da racionalidade
Um dos paradoxos
mais deliciosos desta existência 3.0, é o da “democratização” da participação
no espaço e na arena social ter conduzido ao bloqueio da conversação.
Aparentemente as
redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, Tumblr, Youtube, e os espaços de
comentário público, etc.) comportaram um acesso gratuito à geração e
distribuição de “conteúdos”, isto é deram voz, a todos, ou quase todos desde que
possuam um ponto de acesso à “rede”. O que na realidade significa quase toda a
gente, nalguns sítios mesmo os sem abrigo, não tem residência mas tem acesso à
publicação do que lhes vá na alma. Independentemente do género, idade, credo,
afiliação política, clubística, etnia, cor da pele, educação, cultura, posição
social, situação económica, e nível de saúde mental... todos podem participar
em todos os debates que decorram na sociedade e expressar livremente a sua
visão sobre os assuntos da cidade, dos cidadãos, da cidadania e da vida em geral.
À primeira vista,
e possivelmente à segunda também, esta
democratização quase total e absoluta do acesso à conversa na arena pública
deveria ter gerado mais e melhor informação, menor possibilidade de
mistificações e de ocultações, mais conhecimento e melhor nível de escrutínio
com base em factos. Em resumo, um acesso mais rápido, perene e eficaz à
“verdade”. Ao invés, e na realidade, nos
dias que correm, vivemos debaixo de uma
cacofonia informacional em que é realmente difícil distinguir o que é
verdadeiro do que é falso. Vivemos numa época em que a manipulação das massas,
aparentemente, nunca terá sido tão facilitada nem tão eficaz e eficiente.
Curiosamente o que
acabou por acontecer foi que em lugar de um crescimento da qualidade da participação
individual, do florescimento do indivíduo mais culto, mais informado, com mais
acesso a factos e a modelos de interpretação e classificação dos factos e da
realidade se deu um acantonamento das pessoas em grupos cada vez mais
extremados, irracionais e hostis. E, este fenómeno nota-se em quase todos os
âmbitos da participação e do espaço social.
Não há mais
cidadãos. Há adeptos. Adeptos no sentido de afiliação primitiva e primária como
em qualquer clube de futebol. Falemos de política, religião ou de produtos e
serviços. Há adeptos fanáticos que aplicam de modo acéfalo a lógica “in-group-out-group”.
O que “nós”
fazemos é sempre bem feito, e se por acaso resulta mal fica a dever-se a
circunstâncias externas imprevisíveis ou incontroláveis, o que os “outros”
fazem é sempre mal feito, com intenção maviosa, e se por acaso deles resulta
bem é por mero acaso ou sorte se resulta mal é porque é o que habitualmente fazem,
e faz parte do código genético deles serem grunhos e javardos. Como é que nos
afiliamos nestas circunstâncias? Do mesmo modo que acabamos adeptos de algum
clube. Por assimilação de valores de grupos a que pertencemos nos círculos
sociais básicos – família, escola, bairro, por empatias com símbolos ou por
relações afectivas básicas.
Na realidade estes
processos sempre existiram, a questão é que com as tecnologias de informação e
a globalização tornaram-se quase claustrofóbicos, hegemónicos e incontornáveis.
E muito extremados. O espaço social aprece quase totalmente bipolarizado. Sem
middle ground. E a conversa cessa. Não
há possibilidade de diálogo. Não se constroem espaços de avanço e progresso
pela geração de novas ideias e novos consensos. Só clichés enviados de cada
trincheira aos “outros”. O “outro” deixa de ser um ser a conhecer e compreender
para passar a ser um inimigo irremissível.
Na política, na religião, na justiça e mesmo na economia.
Já li coisas
assustadoras que desculpabilizam a Volkswagen e outros construtores alemães da
coisa espantosa que foi experimentar em símios e seres humanos os efeitos dos
gases produzidos por motores diesel! "Sim, mas...". A relativização do mal produzido pelo “nosso” lado é uma das
características do processo. A duvidosa
ética empresarial e ambiental, as sistemáticas práticas de obsolescência
programada da Apple não desencantam
aqueles que em Tóquio alugam lojas da Apple para realizar cerimónias de
casamento! O consumo de bebidas ao triplo do preço de qualquer concorrente, na
Starbucks está por certo associado a uma dimensão existencial, significação emocional, muito para além
do produto consumido que é indistinguível do produto noutro sitio semelhante. Mas experimentem frequentar os fóruns em que se debata
este tipo de pequenas/grandes questões e repare-se no discurso fanatizado de
alguns próceres das marcas e no ódio destilado, de volta, pelos “inimigos” do produto!
Numa economia capitalista baseada na teleologia do consumo, o fim último, e o valor e significado definitivo, da existência humana é a compra de ... stuff..., o clima é propício
às marcas que tenham conseguido erigir os seus consumidores em “adeptos” que usam com orgulho as cores da “fé” e
regojizam com as “vitórias” sobre os concorrentes. Leiam posts de “adeptos” da
Apple e da Samsung... ou de adeptos da Audi e de adeptos da Honda.
Idem na política,
na justiça ou nos assuntos religiosos. O insulto flui quase imediato e conduz,
necessariamente, ao acantonamento dos participantes nos grupos em que se
articula aquilo que as pessoas querem ler ou ouvir ou ver. O que se produz é
apenas o fim da conversa. A ausência de debate. O diálogo é substituído pelo
“whataboutismo”... “Sim, sim, mas por outro lado vocês também...” , ou pela
negação dos factos “never happened, fake news, alternative facts, different perspectives...”, pela desvalorização e relativização de princípios, ou pelo simples delírio, etc... Nos
últimos dias li coisas inenarráveis, afirmações de mulheres membros destacados de igrejas
evangélicas, a desculpabilizar o eventual comportamento de infidelidade conjugal
do presidente americano com atrizes de porno porque, alegadamente, o presidente
estaria “ungido” por não menos que deus himself... ou os reiterados pedidos de vedetas americanas
brancas para que os brancos cessem de procriar porque os seus filhos apenas
prolongariam o privilégio branco mais que injustificável ...
Em última análise
ganham com este estado de coisas, os que possuam menos escrúpulos, os que
pretendam de impingir banha da cobra e
necessitam de populações de acéfalos que se tornaram voyeurs e gostam do
espectáculo perpétuo e perene... de consumidores sem capacidade ou sem vontade de
escrutínio sobre o que compram...
Não deixa de ser
um interessante, e perigoso, paradoxo que o contexto que propiciaria o surgimento
de pessoas mais conscientes, preparadas, exigentes, críticas, adultas,
autónomas, tenha, pelo contrário, gerado uma massa de tolos que usam com
orgulho o cachecol ...
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