segunda-feira, novembro 04, 2019

Para que serve a ciência então?

A propósito de uma tese de doutoramento de um político que alegadamente explora o azimute contrário ao sentido da orientação actual do dito político ( do que defende e da forma como defende) vi expendidos os argumentos mais extraordinários.

Em primeira instância, e arrumando já um aspecto não interessante mas que gera ruído, vi a desqualificação da fonte do alegado ataque à coerência do político. A Câncio. Pessoa que não me é nada simpática e a quem a pedrada "ao outro não viste mal na licenciatura por fax ao domingo" acerta sempre. A falácia ad hominem é claríssima e tosca. É-me indiferente a razão, a imputação e atribuição de intenção à mensageira. Pode ter sido tudo o que quiserem, o trabalho que ela fez vale. E muito. E o dispêndio de energia neste tipo de interacção, infelizmente tão típica dos dias que correm releva e revela apenas a mediocridade de quem cai na falácia. Lamento mas quem chafurda nesta lama não é melhor que a gaja a quem acusam de ir para Formentera e não desconfiar da luxúria, opulência ou apanhada nas escutas a aconselhar não pedir factura para esconder a coisa. Temos de ser melhores que isto.

Indo ao essencial. Vi inúmeras justificações para a separação da tese e da vida. Uma coisa, li espantado, é a ciência, e o rigor científico, e a adequação aos canones da academia, outra coisa é a vida real. E, nessa sequência, nada obriga um dever de coerência entre o que se "investigou", a "prova empírica" recolhida e a necessária conclusão teórica ou doutrinária e a posterior utilização desse conhecimento ou mesmo o seu repúdio na vida corrente, dita "real".

Em primeira instância esta desvinculação conduz-nos a uma armadilha impensável. A ciência como mero acto ritual. Nas palavras dos que defendem a superioridade da legitimidade e mesmo da inimputabilidade do cientista, a ciência como acto de produção de artefacto cultural. Julgado o valor desse artefacto pelos "pares" e sem que a sociedade (ou os contribuintes) que pagam todo o circo tenha que meter o bedelho no assunto desde logo porque "não são da área". Lamento. Esta extraordinária enormidade conduz-nos a uma situação em que a ciência é aquilo que o cientista quer que seja e diz que é. Validado pelos seus colegas e amigos cm que troca de forma obscena citações mútuas num perpetuo e descarado sistema de you scratch my back i'll scratch yourse. Um sistema autopoiético portanto.  Leva-me esta negação da modernidade, muito fundada na asserção de Latour "we have never been modern" (que está longe de querer dizer o que lhe atribuem) à abertura de portas de toda a sorte de merda pós modernista que nem sequer travesti de ciência é. Que culmina com meros artefacto retóricos sem critério de validação plausível e nem sequer se trata do problema que Godel nos descreveu na sua indecidibilidade. Trata-se mesmo de merda que não é, não foi nem será nunca ciência. Mesmo que para elas existam comissões de avaliação da A3ES. Não, a ciência não tem de ter apenas um carácter utilitarista como gostam de acusar os que defendem que "as universidades não podem ser os laboratórios nas traseiras das empresas" avançado o argumento do "economicismo", mas a ciência tem responsabilidades cada vez maiores em tempos de obscurantismo, que curiosamente provem, em grande modo, das próprias salas de aula das universidades...  Mormente de ser Ciência. Replicável. Escrutinável. Avaliável. Sujeita a dissensão e discussão. Mesmo que em ultima análise cheguemos ao paradoxo de Freeman Dyson e só a Física preencha todos os critérios que ele estabeleceu.

Não faço a mínima ideia se a tese do Ventura é desta estirpe, primeiro porque é na área do Direito que pode ser tudo mas nunca será ciência. Não vou perder tempo com uma coisa que não é validável nem pelo verificacionismo (da modernidade) que nos conduziu a vários becos sem saída, e que em geral à segunda página também não resiste a nenhuma heuristica negativa de Popper (que estatuiu o que deveria ser o pináculo da pós modernidade). Isto é colapsa a um mero exemplo de excepção que qualquer canalizador é capaz de lucubrar.  Mas a  desonestidade intelectual é uma porra. Mesmo no Direito ou nos estudos etnográficos de folclore. Se, hoje, o Ventura não concorda com o objecto ontológico que investigou, com o método epistemológico, ou com as conclusões, ou se acha que o domínio a que aplicou o estudo original da sua tese não é isomórfico do domínio em que hoje opera, ou o domínio onde são expendidas as críticas que lhe foram dirigidas deve clarificar isso com argumentos sérios e atendiveis. O que não pode é dizer que não tem nada a ver o cu com as calças. Não sei se o fez porque não li a entrevista e desconheço o que disse na íntegra. Mas os excertos que li das citações da tese e da entrevista são avassaladores.

O que não posso admitir é que se possa dizer, na alegada defesa da sua incoerência, que quem faz investigação numa área diga que pode discordar dela depois na vida real. A vida real é a ciência a sério. É nela que deveríamos depositar a esperança para que dela saíssem soluções firmes e exequíveis para os problemas que enfrentamos a cada momento. O valor da ciência reside precisamente na possibilidade de explicação do mundo e na perseguição incansável da verdade. Ainda que a cada momento essa explicação possa ser ilusória. E substituída a explicação por cruel oposição de orientações ontológicas adversariais e melhorias epistémicas. Novos dados, novas teorias podem causar o abandono de velhas explicações. O que não podem justificar é lavar as mãos. A justificação para investigar e abocanhar recursos que possuem usos alternativos tem de ser fundamentada em actos de honestidade intelectual e no potencial de benefício, ainda que distante e mesmo pouco visível, para a sociedade e para a nossa vida (eco)comunitária.

Se por absurdo alguém começar a investigar a ligação causal entre uma molécula e um efeito negativo para a vida humana, gastando dinheiro dos seres humildes que andam a pagar impostos e a amochar pelas seis da matina no barco do Barreiro, conclui que há um efeito e recomenda medidas na sua tese por exemplo de saúde pública, depois muda de emprego e vai para um sitio onde o "paradigma" é diverso e passa a dizer que as recomendações que fez na tese não tem nada a ver com a vida real, esta pessoa tem um nome simples, é uma puta (independente do género).

Dito isto tudo sobre o valor social da ciência (exige-se apenas aos STEM o resto é ... literatura moderna) acredito piamente que isto não passe de uma minudência. Quer o Ventura quer os seus inimigos continuarão infelizmente a explorar a teoria de atribuição causal da Psicologia Social com evidente sucesso. O futuro parece-me negro no horizonte e vislumbro poucos raios de luz.

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