Quando eu era jovem adulto andei durante algum tempo a entregar comida a gente que dormia pelas ruas de Lisboa. Mais tarde, denominaram-se estas pessoas como sem abrigo. Na altura aquela actividade não tinha nome. Agora tem a nobreza (a finesse e a moda...) do voluntariado. Na altura, também não era caridade, coisa que sempre me repugnou, mas tão somente uma espécie de imperativo que se sentia de participar no alívio da miséria de outros seres humanos que por esta ou aquela razão tinham desistido ou foram forçados a desistir de ficar à tona numa sociedade que, já nessa altura, se começava a seduzir pelo consumo e em que a medida das pessoas não era o que eram mas o que pareciam ser e, sobretudo o que pareciam ter. Na altura, a actividade reunia pessoas de todos os caminhos da vida, nas mais das vezes organizadas por alguma estrutura amadora de alguma paróquia mas que aceitava ateus como eu, e nenhum de nós fazia grande julgamento nem dos que davam nem dos que aceitavam.
Entretanto a sociedade evoluiu. Ou pelo menos é que parece. O modelo social democrata parece ter sido arredado pelo consenso de Washington como salientou o Judt. Perdemos o fio da narrativa como muito bem arguiu o Sennett. E desembocámos numa sociedade rendida aos proxenetas da "indústria" financeira e aos seus ditames. Reféns de axiomas mais que risíveis. De sofismas que vários próceres nos afiançam ser o fim da história. E, no seio de toda esta imperativa "disciplina orçamental" devemos ter perdido o norte. Ou quem nos comanda mais propriamente, perdeu o sentido do Outro. Ou o sentido de ser apenas humano. No altar da eficiência, da competitividade querem que fique o sangue da nossa compaixão. Mas nós também nos perdemos na indiferença. Mesmo que seja chique e fino ser "solidário" um fim de semana por ano. Realmente nós oferecemos facilmente, demasiado facilmente, o sangue da nossa compaixão a troco de um gadget de plástico com luzinhas.
Levámos séculos de associações, de guildas, de corporações, de sindicatos, de mutualidades, de caixas de previdência, de misericórdias a construir laços de perpetuação da solidariedade, a robustecer as alianças entre cada ser, cada família por forma a repartirmos um pouco melhor o produto do nosso esforço e sobretudo a arranjar maneiras de todos terem um pouco do bolo.
Agora dizem-nos, sem dizer, com aquela hipocrisia disfarçada de bondade e de superioridade, que esse tempo acabou e que , basicamente, é cada um por si. Ou em caso de necessidade que quem precise meta no facebook um pedido para voluntários recolherem tampinhas de plástico no caso do nosso filho ter uma doença crónica. E rezar. Rezar muito para que o preço do plástico não desça nos mercados.
Puta que os pariu.
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