Vivemos uma época nova. Prenhe de coisas admiráveis. Prometedoras. Parecemos finalmente libertos da dependência do meio físico, que os nossos antepassados louvavam e amaldiçoavam. Libertos da doença e com delírios de eternidade. Mas esta época de novidades pós modernas, também nos deixou cínicos e relativistas. Há coisas ameaçadoras que nos deixam ansiosos e angustiados. Respondemos de modos vários. Com hedonismo, que nos faz deleitar com excrementos, necrofilias voyeurs de podridões e dissoluções caricatas, que se podem observar em muitos programas televisivos. Com misticismo e ocultismo apressados e ignorantes, que permitem e possibilitam conexões aparentemente universais de forças misteriosas e telúricas, mas que esquecem o sentido pragmático da origem das lendas, mitos e práticas antigas. Com hiper-racionalismo, que nos faz pedir mais observatórios de coisa nenhuma e de medições e certificações de processos e de realidades imaterializadas cuja unidade de medida se torna delirante nas mãos dos novos sacerdotes ocultistas da gestão e da economia....
Mereceria antes uma reflexão sobre a origem desta aparente desorientação. E, na sua raiz existem, pelo menos três causas simples. A primeira, uma perda de referências básicas do nosso quotidiano durante milénios. Os ciclos da natureza. Que pautavam a nossa vida colectiva: económica; social e mesmo espiritual. Quando a nossa actividade económica era essencialmente agrícola e a indústria era artesanal, dependente do meio físico e dos seus caprichos, as colheitas marcavam um ponto alto da nossa vida colectiva. Uma espécie de fim teleológico sempre repetido. Que nos levava a organizar rituais de fertilidade e a adorar deuses dela encarregues. Que nos levaram a construir simbolismos, ordens e litanias. E que regularizavam a nossa vida mesmo em aspectos de transição entre a idade de criança e a idade adulta, com cerimónias iniciáticas, que regularizavam a perpetuação da espécie com as épocas de festivais pagãos de acasalamento. Com a complexificação da nossa vida económica e social, à medida que nos transferíamos para cidades, este vínculo foi-se esbatendo. Fomos ganhando autonomia da nossa dependência imediata dos ciclos das estações, da nossa relação com o meio físico como primeiro ambiente de sobrevivência. E, chegámos à sociedade industrial, às megalópolis, ao consumo intensivo de materiais e de energias, cada vez com menos mistério. Perdemos a noção de um tempo. Um tempo sempre renovado. O tempo actual, tem outro sabor e não tem rituais. Ou melhor, tem outros rituais, mais rápidos mais inclementes. Temos menos tempo.
A segunda, é a perda do significado, do papel e da função da família. Durante milénios a família, herdeira do clã, da horda, não necessitara do Estado para ver nascer os seus, para os educar, para os ver procriar, para cuidar da velhice e para enterrar os seus mortos. Num espaço por vezes demasiado exíguo, e com pouca mobilidade geográfica e social, coexistiam três quatro ou mesmo cinco gerações. O mundo corria ao sabor dos ciclos lunares, a memória era perpetuada através de histórias e saberes transmitidos com vínculo de sangue. Hoje, estamos espartilhados, sem tempo nem lugar para amar e honrar os nossos, que se encontram à incomensurável distância de dois quarteirões, ao abrigo dos quais se constroem solidões insuportáveis.
A terceira é a perda de sentido teleológico e teológico da existência. Uma certeza de espiritualidade e de deslumbramento que se perdeu. Por isso se procuram mistérios de plástico em sítios imbecis. Não sei se Deus existe ou não. Não sou muito crente em explicações transcendentais e divinas. Não acho que a revelação seja superior ao racionalismo de Descartes. Não obstante, apeámos Deus do pedestal e no seu lugar não pusemos ninguém nem nada. Um vazio. Coisa que a natureza abomina. Talvez estejamos a substituí-Lo pelo dinheiro, pelo poder e pela fama. De certeza que não pela cultura, nem pela integridade nem pela compaixão.
©
José Manuel Fonseca
Sem comentários:
Enviar um comentário