sexta-feira, dezembro 12, 2008

Conto de Natal

Era uma vez um país. E nesse país vivia um rapazinho. O pai, preocupado com o futuro do petiz e acabada a quarta classe, colocou-o a aprender um mester (nesses longínquos tempos não existiam novas oportunidades, só mesmo possibilidades de aprender a fazer coisas pela via menos paternalista do trabalho duro). No caso, o de cortador de carnes num talho. E o petiz cedo evidenciou uma aptidão natural para o negócio. De tal sorte, que se estabeleceu por conta própria ainda era quase imberbe. Foi consolidando a sua network de fornecedores e construiu uma adequada “base de clientes” mercê de um belíssimo “marketing de proximidade” e lábia q.b.! Isso, e uma balança cuja regulação permitia “poupar” cem gramas de carne em cada quilograma vendido, que ao fim de cada dia, em média, davam dois quilitos a favor de futuros cash-in-flows. De modos que ao fim do primeiro ano, conseguiu economizar para um carro em segunda mão com jantes de liga leve. Ao fim de algum tempo, já devidamente casado e com prole, deu entrada, em dinheiro vivo, para um apartamento em sexta linha de mar em Quarteira. O resto pagou, em pouco tempo, em letras que ele era pessoa de boas contas e boa palavra e, não exigia registos desnecessários das suas transacções comerciais. Era em si mesmo um structured investment vehicule de confiança. Os negócios foram progredindo paulatinamente. Mais dois ou três talhos, entre o Seixal e Vale de Milhaços, já em parceria com o filho mais velho, igualmente dotado na gestão das balanças e na gestão de recursos humanos com pronuncia do leste. Nos anos seguintes, aventura-se na moderna distribuição com uma cadeia de sete ou oito supermercados, para a zona de Leiria, em parceria com o cunhado, irmão da terceira mulher, que conhecera enquanto sua empregada num stand de automóveis em segunda mão que detinha com um sócio na zona dos Carvalhos e cujos veículos curiosamente nunca tinham mais do que 20.000 quilómetros andados nas mãos de esposas de médicos dos hospitais civis do Porto. Os negócios vão prosperando e o portfolio diversificado “liberta meios líquidos” suficientes para oferecer apartamentos de duas assoalhadas no Feijó para todos os filhos que entretanto se vão casando. A economia evolui e juntamente com ela o nosso herói. Com um filha licenciada em Gestão de Turismo abre algumas escolas de formação profissional em artes de serviços como cabeleireiros e manicuras, que o mundo evolui para o “imaterial” e para as áreas em que o “conhecimento” é o input chave. Com outro filho, que frequentou um desses cursos de formação profissional na área da programação de sites, acrescenta também uns franchises em domínios de real estate e de “consultoria financeira” em “reestruturação de passivos”. Com a mais nova, abre uma empresa de “eventos” que organiza casamentos e castings para programas de televisão. É accionista de um ou dois bancos. Medalha de ouro de três concelhos. Financia todos os partidos por igual.

Já quase reformado, a tragédia abatesse sobre este empreendedor. Veio sem aviso. Os supermercados estavam, afinal, todos em nome de uma holding do cunhado e de uma brasileira que aquele conhecera num bar de alterne que pertencia ao sócio do stand de automóveis. A mulher foge com o gerente de um dos franchises, não sem antes proceder a levantamentos significativos nas contas “off shore”, que tinham sido constituídas a conselho duma pessoa entendida que fora mesmo e inclusive membro de um governo. Uma inspecção descobre-lhe a careca das balanças e aplica pesadas multas. Porventura enviada a mando do presidente da junta de freguesia, por causa da sua teimosia em não pagar umas facturas de tipografias dos cartazes da última campanha eleitoral, depois de anos de favores do presidente da junta em meter cunhas na câmara municipal para acelerar os loteamentos dos terrenos comprados junto à praia. Seja como for, o word of mouth espalha-se e a sólida base de clientes torna-se volátil e finalmente os talhos fecham. Uma doença neurológica degenerativa assoma neste período. O banco onde tinha colocado a maior parte da liquidez comunica-lhe que os fundos de pensão sofreram um rombo com a crise do sector financeiro. Outra maçadora inspecção revela “fraudes”, “peculato de uso” e outras misteriosas expressões que, certamente, se devem a mau trabalho do contabilista encarregue de organizar os papéis dos centros de formação. No fundo nada que um bom advogado não saiba chutar para canto. Mas como a liquidez não abunda, e como os advogados não vendem fiado, descobre que um quadro valiosíssimo comprado ao amigo ex politico era afinal uma falsificação, bastante medíocre aliás, pelo que, em alternativa, tem de se desfazer de uns apartamentos de Santo António dos Cavaleiros, cuja venda mal cobre os custos das petições iniciais mais requerimentos e demais emolumentos que a sociedade de advogados explica em detalhe de ciência esotérica. Tanto esforço para assegurar o futuro dos filhos pelo menos estava respaldado no facto de todos serem, afinal, funcionários públicos com licença sem vencimento. Do mal o menos.


versão ampliada do Diário Económico...