terça-feira, janeiro 30, 2007

A disponibilidade

Causa-me alguma estranheza a profusão de gente que se disponibiliza para ser consciência de outros. Que se oferece para padrão moral a ser seguido. Que se auto-estabelece como referência e standard. Nesta questão do aborto parece-me existir uma verdadeira inflação de gente que sabe imenso do assunto nos múltiplos planos em que o debate decorre. De repente médicos percebem imenso de doutrina de direito, advogados descodificaram genes e ligações neuronais, sociólogos distinguem-se em conhecimentos sobre neuroses e psicoses, religiosos castos falam com profusão de detalhes de relacionamentos íntimos que por certo leram algures, escritoras rasgam as fronteiras da filosofia, economistas teorizam sobre priões, psicólogos dirimem o código de processo penal. Não há míngua de gente tresloucada e destemperada pela ocasião. O “outro” tornou-se mesmo um local insalubre. Para além disto, há ainda uma dose cavalar de paternalismo nas posições de uns e de outros que me irrita um bom bocado. Eu tenho mesmo dificuldade em ser tomado por imbecil, por garoto e por atrazado mental. São feitios.

Eu confesso que sendo uma coisa de consciência não estou muito disponível para revelar a minha, que a vou utilizar no dia aprazado, mas não faço questão de converter ninguém à minha enorme sabedoria no assunto.

domingo, janeiro 28, 2007

As escolhas de quem nunca escolheu

Parece que os portugueses mais notáveis, ou mais famosos, ou mais grandiloquentes, ou maiores, não agradam à grande maioria dos opinadores. E, em particular a de Salazar causa grande comoção. E, entusiasmo também. Já vi de tudo na justificações e lamentações para a figuração de Salazar e Cunhal entre os dez maiores.

O assunto, confesso, não vai além de um bocejo, mas ainda assim arrisco a mais um "contributo" para a justificação. Trata-se da "idealização" de um tempo estável, regular, ordeiro, monótono do ponto de vista matemático. O de Salazar e o de Cunhal. Tempo e espaço em equilíbrio hamiltoniano. Especialmente atractivas, as idealizações, em períodos em que a densidade da mudanças e a contemporaniedade da bagunça faz do presente uma coisa sem nexo e do futuro uma coisa alarmante, inexplicável, não entendível,e, sobretudo não controlável. Só que o presente sempre foi o que se nos afigura agora e o futuro sempre terá parecido o que agora parece. Portanto se a pergunta tivesse sido colocada há dez ou dois séculos atrás as respostas talvez reflectissem sempre o descontentamento com o presente a ansiedade com o futuro e o sobrevalorizar de algum ser mediocre mais recentemente apontado como autor da ordem e da segurança e da diminuição da ansiedade.

O fenómeno pode ser amplificado por séculos de ausência de gente com espinha e com vontade e nunca habituadas a decidir e a aguentar as incertezas e consequências das decisões. Mas sobre isto outros, tantos outros tem escrito já toneladas de coisas. E este escrito apenas junta mais alguma poeira a outros tantos.

Em todo o caso os semelhantes atraem-se, e a pequenez, a obediênciazinha, a ignorância, a insularidade e o paroquialismo, a paranóia e a ilusão de controlo sempre foram companhias excelentes e deram-se bem umas com as outras. Os escolhidos são óptima companhia para os que escolhem, a sessenta cêntimos mais IVA.

sábado, janeiro 27, 2007

As conversas

foram artigos publicados (não necessariamente pela ordem apresentada aqui no blog) na revista Psicologia Actual no ano de 2006.

Conversas do Quotidiano Vulgar (11)

“Mas depois, isto é mesmo assim?”

Ora esta pergunta é, frequentemente, feita por alunos com ar desconfiado, ou mesmo céptico, quando não, mais que abertamente trocista, questionando a pragmática da coisa. E, eu, nas mais das vezes, lá amanho um “bom pelo menos devia ser assim...”!

E a pergunta nasce do facto de uma boa parte do meu tempo, ser gasta a industriar os meus alunos, na adequada utilização de semânticas e sintaxes cruciais nos tempos que correm. Ou seja, tento torná-los proficientes numa das linguagens mágicas da contemporaneidade – a da gestão de empresas. Uma das coisas que é essencial que aprendam são algumas declarações de valor, ou de fé, que hierarquizam e adjectivam os sentimentos e emoções que é suposto experienciar posteriormente na vida real. Por exemplo, que os “Clientes” são a razão de existência da “empresa” e, que devemos fazer tudo para os satisfazer, modalidade ou via única para os preservar e manter fiéis aos produtos ou serviços que fornecemos, em concorrência com outras empresas sequiosas de ocupar o nosso espaço no mercado. Este pequeno desígnio justifica toda uma monumental série de sub-ciências, que se ramificam em modelos (mais léxico e regras semânticas e sintácticas a aprender), como Marketing, Estratégia, Qualidade Total, Engenharia Simultânea, Análise de Portfolios, e eu sei lá que mais... Claro que estas palavras se “desmultiplicam” numa complexa teia de considerandos que se espraiam em técnicas e acções a executar por forma a vencer esses marafados da concorrência e alcançar o Éden.

Eu confesso, há neste Universo áreas, que mesmo para mim, já são obscuras. Suponho mesmo que já existam alçapões por onde cairia em abismos dignos dos filmes que envolvem elfos e criaturas mágicas... Já não estou seguro se as técnicas para retermos a fidelidade dos clientes não envolvem, inclusive, o controlo mental, voodoo ou outras técnicas ocultistas. Uma coisa é certa, entre a nossa comunidade emerge uma verdadeira transcendentalidade da expressão “Customer Satisfaction”. Um anglicismo que faz o coração bater mais depressa, e que culmina a litania da glorificação do “Cliente”. O cliente satisfeito e motivado para nos premiar com a sua preferência.

Mas, há luz das experiências recentes, tenho grandes dúvidas sobre a utilidade de uma bela parte deste esforço linguístico que faço na Universidade. E sou assaltado pela descrença dos meus alunos. Ultimamente, ocorreu na minha casa uma verdadeira hecatombe de avarias. Televisões, aspiradores, computadores, consolas de jogos, quem sabe em solidariedade com a minha nova condição de cardíaco, resolveram fenecer ou cessar a sua função. E, dentro ou fora do período de garantia, a interacção com as empresas que fabricaram ou assistem os equipamentos, têm constituído experiências inolvidáveis. Passado o período de garantia, invariavelmente, a solução aconselhada é deitar fora e comprar novo! E, parece de facto mais racional do ponto de vista económico, e do ponto de vista estritamente individual. A reparação é sempre orçamentada pelo dobro de um equipamento que já tem pelo menos mais do quádruplo das rotações por minuto, dos pixels, do ratio de resolução e sabe Deus que mais misteriosas coisas. Mas, e do ponto de vista social? Confesso que me fascina o destino de toneladas e toneladas de televisões e computadores e outros lixo electrónico. Confesso que sou um cínico e que desconfio que a bendita reciclagem seja um conto de fadas que um dia desabe sobre nós. Sob a forma de máquinas auto-construídas com desejos de vingança e angústias existenciais!

Por outro lado, quando a coisa ainda está no período de garantia, como uma consola portátil com três mesinhos de vida de um dos meus garotos, a troca por outra é imediata, nem se discute. Aquilo de qualquer modo já está tão miniaturizado que nem vale a pena pensar numa intervenção humana para substituir um qualquer micro chip de cem menréis. Só que o nem se discute é um belo eufemismo. Afinal o processo demora o seu tempo, mais concretamente umas largas semanas. E, logo por azar, os presentes de Natal eram jogos para a bendita consola. Aparentemente a nova consola que substitui sem mais delongas nem discussões (que o consumidor tem sempre razão e temos de o tratar bem...) vem de Saturno! Ao mesmo tempo que todos estes processos decorrem, o telefone toca. Constantemente. De todo o lado surgem ofertas magnificas. De cartões de crédito sem pagamentos, de operadores de telefones sem mensalidade. De promessas penhoradas de que a empresa que nos contacta tem um mundo de delicias e prazeres à espera de um pequeno click ou sim da nossa parte.

Eu por mim já nem sei o que deva dizer aos alunos. Provavelmente que não deliciem tanto os pobres clientes. Que os deixem em paz e quem sabe, lhes vendam produtos e serviços que simplesmente funcionem...

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José Manuel Fonseca

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (10)

A culpa de ter partido, a raiva de ter ficado e a saudade de não voltar

Há quem diga que Portugal sofre de uma doença bipolar. Seriamos, portanto, possuidores de uma natureza maníaco-depressiva, oscilando, sem realismo, entre a fuga megalómana para o prognóstico de realização imperial e, o soçobrar, o colapso colectivo, que se afunda no diagnóstico auto-punitivo de tragédias anunciadas a que se segue um desejo de regeneração que nunca é concretizada. Ora o problema parece-me ser outro.

Parecemos mais um povo infantilizado. Eterno adolescente imberbe, cheio de angústias e de crises de auto confiança. Inseguro e incapaz de largar de vista a mão do pai idealizado contra o qual, paradoxalmente, se quer afirmar. Típico dos adolescentes, vivemos em eterna auto perscrutação, numa zona nebulosa e ambígua, ansiosos e hesitantes sobre os desígnios a perseguir e incertos quanto às acções a executar.

Oscilamos, de facto, entre a amargura do falhanço antecipado e a euforia irrealista e inebriante de um futuro radioso e grandioso. Em qualquer dos casos, em termos absolutos e definitivos, para além de qualquer ponto de equilíbrio redentor. Por vezes, apresentam-nos cheios de manhas e de mecanismos de defesa, somos ardilosos de modo um pouco cobarde, e sentimo-nos inferiores. Outras vezes, cheios de sonhos de importância perene e esmagadora, somos arrogantes e megalómanos e sentimo-nos superiores. No fundo, como qualquer adolescente à procura do seu lugar no mundo e do seu papel.

Um povo adolescente eternamente à procura do pai ideal que alumie o caminho a percorrer e sempre a rejeitar qualquer pai que se afigure possível. Um povo prisioneiro, há séculos, deste paradoxo. Sempre em busca de um líder/pai carismático idealizado que nos exima de nos maçarmos com a angústia do trabalho e do pensamento e a quem possamos transformar em bode expiatório para a nossa própria inépcia e preguiça. Um povo que teme a incerteza tanto, que “compra” qualquer certeza ilusória. E que se acostumou a estar naquela zona cinzenta em que se pode atribuir às circunstâncias e a terceiros a “culpa”, por coisas que, de outro modo, poderiam ser corrigidas como parte de processos de aprendizagem e crescimento. Um povo que por vezes cede à impotência, disfarçada pelo marialvismo e pelo misticismo barato. Não raras vezes, consumimo-nos na cobardia de não denunciar pela frente aquilo de que nos entretemos a fazer a dissecação em voz baixa, sempre lestos a condenar, antes de prova irrefutável, elaborando longuíssimos e amplos juízos de intenção e de valor. Um povo demasiado habituado a não tomar decisões e a assumir a responsabilidade pela escolha produzida. Um povo ignorante que se presume sabichão. E choramingas. Sempre coitadinhos.

Seremos antes um povo de indivíduos fracos, incapazes de relacionamento de iguais, ansiando pela validação e afago do chefe? Mas somos mais um povo sem individualismo, porque, aparentemente, a nossa individualidade é apenas uma mera expressão da diferença percebida ou desejada em relação ao outro, e não base de autoconfiança e crescimento próprio. Antes pelo contrário, dependentes do reconhecimento do e pelo outro, que contudo nunca é suficiente, porque é sempre relativo, pedinchamos constantemente atenção e carinho que depois não aceitamos porque somos incapazes de assumir uma relação igual em que tenhamos de nos dar também. Preferimos pois, a adulação distante em lugar da emoção genuína. Basta ver como por circunstâncias e ocasiões várias, sempre que há eventos, cá dentro ou lá fora, mandamos repórteres perguntar aos estrangeiros de modo retórico: “- Então o que diz de Portugal? Somos um povo simpático e que se desenvolveu imenso, não acha?” “Não acha que podemos ser campeões do mundo?”
E o pobre turista apanhado desprevenido lá balbucia, com um sorriso de perplexidade, um “pois”...

Incapazes de enfrentar o confronto com o outro. De dizer frontalmente aos milhares de “protagonistas” da ausência de ideias e de estratégias, que é tempo de arranjarem roupas porque, para além de nus, vão monótonos e saloios...

Mas enfim, sempre temos um solzinho que faz inveja aos nórdicos e um tinto de Pias que é um espectáculo... no fundo no fundo para quê mudar se virá sempre alguém resolver os nossos problemas por nós... hã?

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José Manuel Fonseca

terça-feira, janeiro 23, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (9)

Miragem Perdida


Vivemos uma época nova. Prenhe de coisas admiráveis. Prometedoras. Parecemos finalmente libertos da dependência do meio físico, que os nossos antepassados louvavam e amaldiçoavam. Libertos da doença e com delírios de eternidade. Mas esta época de novidades pós modernas, também nos deixou cínicos e relativistas. Há coisas ameaçadoras que nos deixam ansiosos e angustiados. Respondemos de modos vários. Com hedonismo, que nos faz deleitar com excrementos, necrofilias voyeurs de podridões e dissoluções caricatas, que se podem observar em muitos programas televisivos. Com misticismo e ocultismo apressados e ignorantes, que permitem e possibilitam conexões aparentemente universais de forças misteriosas e telúricas, mas que esquecem o sentido pragmático da origem das lendas, mitos e práticas antigas. Com hiper-racionalismo, que nos faz pedir mais observatórios de coisa nenhuma e de medições e certificações de processos e de realidades imaterializadas cuja unidade de medida se torna delirante nas mãos dos novos sacerdotes ocultistas da gestão e da economia....

Mereceria antes uma reflexão sobre a origem desta aparente desorientação. E, na sua raiz existem, pelo menos três causas simples. A primeira, uma perda de referências básicas do nosso quotidiano durante milénios. Os ciclos da natureza. Que pautavam a nossa vida colectiva: económica; social e mesmo espiritual. Quando a nossa actividade económica era essencialmente agrícola e a indústria era artesanal, dependente do meio físico e dos seus caprichos, as colheitas marcavam um ponto alto da nossa vida colectiva. Uma espécie de fim teleológico sempre repetido. Que nos levava a organizar rituais de fertilidade e a adorar deuses dela encarregues. Que nos levaram a construir simbolismos, ordens e litanias. E que regularizavam a nossa vida mesmo em aspectos de transição entre a idade de criança e a idade adulta, com cerimónias iniciáticas, que regularizavam a perpetuação da espécie com as épocas de festivais pagãos de acasalamento. Com a complexificação da nossa vida económica e social, à medida que nos transferíamos para cidades, este vínculo foi-se esbatendo. Fomos ganhando autonomia da nossa dependência imediata dos ciclos das estações, da nossa relação com o meio físico como primeiro ambiente de sobrevivência. E, chegámos à sociedade industrial, às megalópolis, ao consumo intensivo de materiais e de energias, cada vez com menos mistério. Perdemos a noção de um tempo. Um tempo sempre renovado. O tempo actual, tem outro sabor e não tem rituais. Ou melhor, tem outros rituais, mais rápidos mais inclementes. Temos menos tempo.

A segunda, é a perda do significado, do papel e da função da família. Durante milénios a família, herdeira do clã, da horda, não necessitara do Estado para ver nascer os seus, para os educar, para os ver procriar, para cuidar da velhice e para enterrar os seus mortos. Num espaço por vezes demasiado exíguo, e com pouca mobilidade geográfica e social, coexistiam três quatro ou mesmo cinco gerações. O mundo corria ao sabor dos ciclos lunares, a memória era perpetuada através de histórias e saberes transmitidos com vínculo de sangue. Hoje, estamos espartilhados, sem tempo nem lugar para amar e honrar os nossos, que se encontram à incomensurável distância de dois quarteirões, ao abrigo dos quais se constroem solidões insuportáveis.

A terceira é a perda de sentido teleológico e teológico da existência. Uma certeza de espiritualidade e de deslumbramento que se perdeu. Por isso se procuram mistérios de plástico em sítios imbecis. Não sei se Deus existe ou não. Não sou muito crente em explicações transcendentais e divinas. Não acho que a revelação seja superior ao racionalismo de Descartes. Não obstante, apeámos Deus do pedestal e no seu lugar não pusemos ninguém nem nada. Um vazio. Coisa que a natureza abomina. Talvez estejamos a substituí-Lo pelo dinheiro, pelo poder e pela fama. De certeza que não pela cultura, nem pela integridade nem pela compaixão.

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José Manuel Fonseca

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (8)

Futuros em Aberto

Aqui, 23 de Agosto 2087. Na minha rua foi descoberta uma pessoa que lia livros e possuía mesmo um dicionário. Denunciado por um comité de cidadãos preocupados, de que faziam parte a D. Célia e o Sr. Marco, o meliante foi encaminhado para o Tribunal Supremo da Grande Inquisição dos Comportamentos Socialmente Aceitáveis. Os Meretissímos Juízes E. Rangel, J. Moniz e En de Mol e outros membros do colectivo, de que se tornaria fastidioso dar conta, conduziram um rigoroso inquérito. Concedendo em média dois segundos para cada resposta, colocaram perguntas de grande relevância jurisprudencial e objectividade, como por exemplo “já deixou de ser um perigoso facínora e um ser desprezível? Sim ou não?”
Aguardando com paciência o que o arguido tinha para dizer, o inquérito prolongou-se por mais de quinze minutos, excedendo a norma de eficiência interrogatória MJ67/2077, enquanto o arguido murmurava coisas incompreensíveis sobre um denominado princípio do terceiro excluído. Instado a comentar, por uma, competente e culta, jovem jornalista do canal 34 da Grande Televisão Unificada, o PM balbuciou a frase “é necessário aguardar com serenidade”, tendo a jovem jornalista concluido com autoridade, “portantos, concorda com a pena perpétua aplicada, portantos….”

Aqui, 8 de Maio de 2056. Devido a um feliz acaso, um cidadão da minha rua descobriu num velho baú, um documento que vem por fim a especulações sobre a viagem de Vasco da Gama. Prova-se, finalmente, que a 4 de Junho de 1447, Vasco da Gama recebeu o “go ahead” para a expedição por parte da 12ª comissão de avaliação de projectos de risco. A comissão, presidida pelo Conde Economicus Rationalis, ficava satisfeita quanto ao cálculo do valor actualizado do cash flow a gerar pelo empreendimento, quanto à bondade do cronograma do projecto, e, sobretudo, quanto ao formato dos relatórios a enviar trimestralmente ao “review board”. Foram nessa altura dissipadas as dúvidas quanto à nau “Bérrio” que tinha sido indevidamente inscrita e referenciada como caravela no formulário entregue na 3ª Comissão de Avaliação Global de Hierarquização Múltipla de Projectos. Recorde-se que este erro, tinha levantado dificuldades à configuração do sistema de avaliação de desempenho global bem como ao sistema de monitorização parcelar, com vista à certificação do “final report”. O Capitão Gama, tinha proposto que a descoberta da Índia ocorreria pelas 18 horas e 35 minutos (tempo local) do dia 22 de Maio de 1498, facto que levantou alguma celeuma dadas as calendarizações de outros projectos. Por sugestão do Barão Precisus Cartesianus, o cronograma foi revisto tendo sido acordada a data de 20 de Maio pelas 3 horas com uma tolerância de 26 minutos de acordo com a norma de qualidade de investigação fundamental em projectos oceanográficos ISO 0897/65 e com a norma de assertividade na navegação 342/87.

Face a esta magnifica descoberta, o ministro da educação qualificante pós doutoral, apanhado de surpresa no intervalo das gravações do popular concurso “A Minha Vida é ver Televisão”, em que como sabem, todas as terças feiras é sorteado um concorrente da casa, a quem é implantado um receptor neural de televisão e removida a zona que controla o sono, por forma que o felizardo consiga ver seis mil canais em simultâneo sem necessidade de perder tempo a dormir, declarou, “trata-se de mais um sucesso da política de rigor e modernidade que vimos trilhando”.

Aqui, 14 de Janeiro de 2071. Um cidadão da minha rua decidiu requisitar uma ama a tempo inteiro, aos serviços de estrutura social do Ministério da Reforma de Grupos de Risco. O jovem cidadão C. Malhadas, de quatro anos, foi o primeiro cidadão da minha rua a exercer o direito que a nova lei de apoio a “orfãos de pais ausentes” confere. No formulário 24/B/25HG, que recorde-se substitui o anterior formulário ER/89/GK, o declarante assinala que os pais se encontravam em casa (definido o espaço casa em termos sociais de acordo com a norma TY453/ISO/32) menos do que a média de 19 minutos, o que viola a norma de tempo parental mínimo de qualidade definido pela norma IPQ/8900. Para além desta violação grosseira, os pais de C. Malhadas, não cumpriam ainda a norma que regula o tempo mínimo de qualidade comunicacional. A comissão que avaliou a fase de apreciação preliminar do pedido do cidadão Malhadas verificou, adicionalmente, que os pais dele não aferiam os cronómetros instalados na residência dos Malhadas nos últimos sete meses. Esta violação, gravíssima, da utilização de artefactos centrais, conduziu o casal a um julgamento sumário no Tribunal de Inquisição Média da Família em Conceito Lato, que sentenciou o casal a dois meses de interdição da frequência de espaços comercias bem como à cessação do direito de requisitar anti-depressivos por igual período, adicionalmente o casal fica proibido de enviar postais para castings em programas televisivos.

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José Manuel Fonseca

sábado, janeiro 20, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (7)

As escolhas e as consequências

À beira de mais um ano lectivo proponho alguns tópicos para reflexão.

Poderá o Estatuto de Carreira Docente não incluir as palavras “educar”, “ensinar”, “instruir”, “aprender”? Pode, claro que pode. Mais, poderá a Lei de Bases do Sistema Educativo não conter a palavra “educar” e a palavra “disciplinar”? Pode pois. Em contraponto, pode, no que se refere aos objectivos do ensino primário, conter coisas bizantinas como: “Fomentar a consciência nacional aberta à realidade concreta numa perspectiva de humanismo universalista, de solidariedade e de cooperação internacional;” . Confesso que não faço a mínima ideia como é atingido este objectivo. Chegados ao ensino superior, os bravos alunos enfrentarão um contexto que visa: “Suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração;”. Sou franco, não sei muito bem o que é uma “estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração”. Eu, que também sou pai, tenho a expectativa que na escola primária, os meus filhos desenvolvam consciência cívica, moral, capacidade crítica, sentido de solidariedade, sensibilidade estética, vontade de reciclar, de lavar os dentes e de não extrair macacos do nariz em público. Procuro assegurar que também lhes ensinem aritmética, gramática e que adquiram mais léxico que o dos presidentes dos clubes de futebol. E que lhes exijam respeito pelos professores e por si próprios.

Poderão os pais, no ensino secundário, assinar justificações de faltas dos seus filhos, com a expectativa muito razoável que sejam deferidas, porque os filhos foram ao funeral de uma “actor” de telenovelas? Poderão os pais assinar justificações de faltas dos filhos, com igual expectativa à anterior, porque os filhos foram a “castings” para telenovelas? Aparentemente, sim senhora. Porque, parece que muitos e muitos pais acreditam que há duas soluções de vida para os filhos. Serem famosos ou ganharem o euromilhões. Até porque as trágicas consequências dos comportamentos do jovem “actor” passaram sem apreço, nomeadamente que visasse “Desenvolver a formação moral da criança e o sentido da responsabilidade, associado ao da liberdade”. Ficou-se apenas pela exploração até ao vómito da imagem idílica do personagem na novela. A consideração e homenagem ao jovem que morreu nunca foi feita.

Poderá um professor ser incomodado porque sobre um garoto, de onze anos, apresentado como “não lente e não escrevente” simplificou e reduziu a coisa ao analfabetismo? Aparentemente sim, pode ser mesmo criticado com dureza. Porque na terminologia “adequada” não deveremos traumatizar a “criança”. Devemos antes remete-la para um mundo de ilusão paternalista, pelo menos até ela sair finalmente do “sistema educativo” e deixar de ser “actor do processo” e, finalmente, lhe bater no focinho o mundo desencantado. Claro está, pode entretanto ter “sorte” e pode chegar a alguma telenovela.

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José Manuel Fonseca

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (6)

Mudanças

Suponho que os leitores(as) estejam entre aqueles(as) que recebem, constantemente, correio electrónico cheio de bons conselhos. Sobre as coisas efectivamente importantes da vida, sobre a prudência financeira, sobre a gripe das aves, sobre as cautelas a ter para evitar assaltos enquanto se está parado nos sinais vermelhos, sobre os perigos dos micro-ondas, sobre os malefícios do tabagismo, sobre educação de adolescentes, sobre a preservação da juventude de espírito, eu sei lá....

Em geral, estes conselhos implicam mudança de comportamentos. Os apelos à mudança de comportamentos são tantos que é difícil atender (e entender) a todos. Ao lado destes imperativos éticos e estéticos, florescem variadíssimas actividades económicas. Se olhar em seu redor observará que já há disponíveis no seu minimercado local quase todos os produtos que incluem coisas misteriosas como bífidos activos, antioxidantes, ou ainda mais bizantinas como elkazéimunitazes, ou mais triviais como alho em pílulas para o coração que combatem os radicais livres, soja sob a forma de croquetes a sobremesas de morango, e claro está o aloé vera incluído em quase todos os produtos mesmo os de higiene doméstica ou corporal. Toda esta infinidade de produtos aparecem associados a serviços de meditação transcendental, de ginástica tântrica, de leitura de runas, de redecoração do ambiente em que vive sob a égide do feng shui, de massagens em diversas partes do corpo, cada uma com um nome e um diploma de proficiência quando não de deontologia e carteira profissional associada, ou de actividades com nomes menos ocultistas e mais fashion como body pump, ou step ou cardiofitness... Quando não resultarem estas mézinhas, podem os mais afluentes recorrer a múltiplas formas de preservar a juventude sob a forma de injecções ou de cirurgias com ou sem introdução no corpo de objectos artificiais.

Em psicologia, não se fica de fora deste mercado promissor. A discussão sobre mudança ou inovação de comportamentos em psicologia é um dos melhores diálogos de surdos que conheço. Desde as escolas mais analíticas às das terapias breves todos possuem uma solução para mudarmos e nos tornarmos melhores pessoas. Em geral, estou certo, se seguíssemos mesmo, ainda que uma percentagem pequena, de todos os conselhos que recebemos, seriamos mais saudáveis, mais espontâneos, mais felizes, mais equilibrados, e eventualmente nem sequer teríamos prisão de ventre, ou colesterol alto.

O que me fascina nesta questão toda é a dificuldade que temos em envelhecer. Em nos sentirmos bem nas e através das diversas fases de vida em que vamos passando. Acho surpreendente, a quantidade de pessoas que parecem dependentes de ilusões de juventude eterna, de saúde infinita, de beleza imortal, de perfeição sem mácula. É bem possível que esta percepção seja fortemente enviesada pelos mídia. Provavelmente não há assim tanta gente a viver neste mundo de seres com dentição completa e sem vestígio de cárie...

A maior parte de nós, olha para toda aquela classe de conselhos através das lentes de outra ilusão perigosa. A de que somos mesmo imortais, não precisamos de nada daquelas coisas e podemos prosseguir com a nossa vida sem aquelas “obsessões” todas...

Curiosamente, descobri muito deste mundo nas circunstâncias em que me encontro enquanto escrevo estas linhas....aguardando, por horas, que me serrem o esterno e me “reparem” três artérias que fazem bastante falta... E, portanto, agora sou objecto, não só por correio electrónico, como de viva voz, da atenção de vários familiares e amigos que me favorecem com conselhos de variadíssima índole e amplitude. Desde que experimentei o que era um enfarte agudo do miocárdio, já provei inúmeros produtos, que tivesse eu consumido em programas cientificamente testados teriam eliminado o excesso de colesterol que justamente me tramou... Entretanto deixei de fumar, para grande satisfação de amigos médicos que fumam bastante, só tenho comido peixe e legumes sem sal e sem sabor, judiciosamente aconselhados por amigos que se deliciam com secretos de porco preto e um tinto de Portalegre...

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José Manuel Fonseca

terça-feira, janeiro 16, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (5)

A minha geração

A minha geração está agora no poder. Entreteve-se em meados da década de setenta a discutir politica com um entusiasmo pueril, tipicamente adolescente, cheio de certezas e absolutos imperativos incontornáveis e inexoráveis. Participou em RGA’s loucas e exuberantes, colocando tudo em questão, construindo futuros imaginários inadiáveis e inelutáveis. A minha geração respirou a explosão do ar da liberdade sem verdadeiramente conhecer o cheiro fétido do medo de pensar e safou-se da guerra. A minha geração fazia directas na praia à luz da fogueira e de sonhos generosos discutindo filmes de Tarkovsky e as obras de Milan Kundera. A minha geração descobriu o inter-rail, andou pelos campos e pelas cidades vivendo sem barreiras e quase sem limites. A minha geração experimentou quase tudo o que havia para experimentar. Mas a minha geração envelheceu. É como aqueles pêssegos descongelados nas prateleiras dos supermercado. Era brilhante e radiosa. Mas quando chegou a casa já estava definhada. Macilenta e sem fulgor. A minha geração rendeu-se. Ao dinheiro, ao estatuto, à fama, à capa de revista em que se anuncia ao mundo que se planeia um divórcio ou que se vai repuxar centímetro e meio de pele no focinho. Ao óbvio, ao pragmatismo, ao leasing da mota, ao silêncio.

A minha geração entregou-se. Vive de memórias do que poderia ter sido. A minha geração que tudo questionava aceita agora o absurdo como estado natural. A minha geração vira a cara e olha para os dias de ontem, quando uma pessoa tem um filho queimado e tem de ir com ele para Espanha, porque aqui há armazéns com aviões de combate no valor de milhões e milhões e milhões de euros encaixotados há anos mas não há um sitio para tratar crianças queimadas. A minha geração rendeu-se. A minha geração que produziu motins por segundas chamadas de exame fica agora impotente perante os concursos de promoção que já toda a gente sabe antecipadamente qual o resultado.

A minha geração que produzia acusações terríveis e insofismáveis contra os injustos e injustiças, na cara deles, de dedo em riste, fica agora calada perante a exibição de seres medíocres sem vergonha de serem escutados a combinar resultados de jogos. E, que vão para tribunal declarar que vivem à beirinha da pobreza e da quase indigência para evitar as custas judiciais ao mesmo tempo que os vimos de Armani no aeroporto. A minha geração que discutia as letras do Lamb Lies Down on Broadway como se a seta do tempo dependesse da exegese, consome agora doses cavalares de imbecilidade telvisionada a que constitucionalmente temos todo o direito. A minha geração que era inconveniente e comentava alto durante as sessões de cinema e levava a casa abaixo de riso, assiste agora sem reacção às nomeações de afilhados do jardineiro da cunhada do gajo da concelhia para directores do centro cultural de Alguidares de Centro. A minha geração que prometia solenemente mudar o mundo, muda de camisa para ir assistir ao lançamento da primeira pedra da empresa presidida por um ex futuro deputado que enquanto foi subsecretário de estado a ajudou a criar facilitando tudo e um par de botas. A minha geração que repudiava como heresia e pecado inominável a falta de honestidade comprou uma casa na falésia com desconto da sisa mas dando de vez em quando um donativo para a Liga de Protecção das Minhocas em Extinção.

A minha geração envelheceu. Amadureceu e tornou-se igual a todas as outras que capitularam perante o “fado”. Não há nada de especial na minha geração. Vai a Bruxelas e tem casas de cinco assoalhadas com estacionamento e jacuzzi. Acomodou-se. Vai a despacho. A minha geração aprendeu que o respeitinho é muito bonito. A minha geração acotovela-se para aparecer na TV atrás do senhor ministro enquanto ele diz coisas com ar grave e advérbios de modo. A minha geração tornou-se numa força incontornável de amanuenses venerandos e realistas.
Eu sou da minha geração. Mas não tenho orgulho nisso.

PS. É claro que isto não é a minha geração. Mas eu escrevi isto quando assistia a um programa com uma daquelas criaturas do esplêndido mundo da bola, que não é pior que os outros mundos. Podia ter sido escrito enquanto assistia a um programa com um autarca a incentivar o sábio uso de pedradas, ou com um ministro a explicar porque é que temos de fazer o que ele diz mas não que ele faz... tanto faz...

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José Manuel Fonseca

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (4)

A Pergunta


Em geral temos uma cultura de castração e de repressão. Aparentemente, temos até, agora, erigida em doutrina do calduço uma apreciação superior, que nos remete para uma perigosa categoria de pais negligentes se evitarmos o exercício profilático da palmada correctiva. Distinguimo-nos dos judeus que louvam as crianças (pelo menos nessa fase) pela capacidade de perguntar. Incentivam a curiosidade, a descoberta e a crítica. Muitas vezes as perguntas são devolvidas com outras perguntas, mas são sempre respondidas. Por exemplo, quando um miúdo chama alguém de puta. Em lugar de levar logo um estaladão pavloviano, podemos sempre afirmar que a palavra é forte, que é desagradável, é ofensiva, é dura. Quando se diz uma coisa dessas o objectivo é ofender, magoar e fazer com que o outro não goste de nós, ou mesmo provocar o corte da comunicação e da relação. As crianças aprendem que há sempre consequências para este tipo de comportamentos e de palavras, aliás há para tudo o que dizemos. Portanto são informadas de potenciais consequências se persistirem naquele curso de acção. Podem escolher um bom ou um mau relacionamento.
Entre nós, a resposta mais comum à pergunta, à afirmação ou mesmo à provocação de uma criança é a negativa. Talvez, e felizmente, já não seja violenta. Os estalos ou sopapos, já para não mencionar as “pedagógicas” tareias de cinto, são crescentemente substituídas pela imposição de absolutos primários. Errado, mau, feio!

Uma criança pergunta, frequentemente, coisas absurdas, inacreditáveis, vocifera asneiras, frustrada com coisas tão básicas como a recusa da mãe ou do pai em fornecer mais um copo de sumo antes de começar a comer a refeição. Murmura um palavrão que aprendeu nesse dia na escola, atira com uma ordinarice recentemente adquirida. Leva de volta a ameaça, a sentença, a condenação inapelável, por vezes o "exílio" no quarto, talvez ainda no quarto escuro. E, começa a saber que há coisas (muitas) impronunciáveis, é informado de coisas aparentemente graves como que é novinho, que não tem idade, que é feio, que é mau, que é errado.

Porque ainda está desarmado para saber distinguir a pessoa da afirmação, é incapaz de diferenciar o feio aplicado à frase que pronunciou e presume que é ele que é feio, começa por se sentir sujo, inadequado. Em adição a isto, provavelmente, detecta incongruências no comportamento daqueles que lhe recomendam que nunca minta, que nunca diga asneiras nem palavrões, que seja sempre honesto. E, se calhar uma vez até se aventurou a questionar o progenitor sobre esta contradição. Talvez para apenas levar de volta "Faz o que te digo, não faças o que eu faço". Frase liminar que coloca a cereja em cima do bolo.

Mais tarde torna-se silencioso. Cala a afirmação que o rei vai nu. Não tem dúvidas nas aulas. Tem vergonha de perguntar. Não participa nas reuniões. Mede as palavras com receio de vários tabus que já interiorizou. Torna-se artificial e contido. Murmura silenciosamente ameaças inomináveis, fantasia catástrofes variadas para aqueles a quem tem de reverenciar com o seu silêncio respeitoso e falso. Torna-se um cobardolas encartado e certificado com ISO 9000. Sabe muito bem que é impensável perguntar a um tipo que se desdobra em conselhos para os outros serem empreendedores porque estudou o assunto até à exaustão, porque raio de porra é que o gajo não se tornou empreendedor. Sabe que é impossível perguntar a toda esta casta de conselheiros se já tomaram o remédio que recomendam.

Torna-se um óptimo português.

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José Manuel Fonseca

sábado, janeiro 13, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (3)

A sedução

É incontável o número de cursos que garantem sucesso nas conquistas profissionais ou sexuais. Basta consultar o Google e aparece imediatamente uma lista infindável de métodos mais ou menos mecânicos, ferramentas de sedução para qualquer situação em que a vida nos coloca. Parece que se pode aprender a fazer olhares, ensaiar poses, utilizar pausas dramáticas ou técnicas de sincronização que tornariam o “Zelig” de Woody Allen (do filme homónimo, de 1983) um ser sem nada de estranho ou notável ou, inclusive, aprender a realizar gestos e palavras subliminares e até hipnóticas...Quiçá, antes de embarcar nessa despesa, eu possa ajudar no processo de compra.
A sedução assenta em dois princípios psicológicos muito simples. Primeiro, na consideração pelo outro, na forma de ouvir e comunicar na linguagem do outro. Por linguagem entenda-se também a não verbal. Em segundo lugar, no alimentar das expectativas e fantasias do interlocutor em relação ao mundo em que este se insere e em relação ao sedutor. A chave da sedução está no mistério que o sedutor cria à sua volta. Na incerteza e interesse que gera no outro. Nas meias palavras e nos meios silêncios. Ou seja, numa ambiguidade que permita ao interlocutor imaginar o sedutor em possíveis papéis, que possa desempenhar, que o interlocutor constrói como forma de regular as pequenas inconveniências do presente enquanto se projecta em futuros mais apetecíveis.


A maior parte de nós está demasiado ocupada em se ouvir a si mesma a explanar, com profundidade e extensão, a sua munificente sabedoria sobre assuntos avulsos. Com grande assertividade desenvolvemos visões mais ou menos rebuscadas sobre tudo e sobre nada. Estaremos aliás particularmente habilitados nestes domínios: raramente se encontra uma dúzia de portugueses que não subscreva duas dúzias de opiniões, por vezes bizantinas, sobre qualquer assunto que esteja em apreço. O sedutor não nega nem afirma a opinião do outro. Incentiva o interlocutor a usufruir dum período em que é escutado sem oposição e com “evidente” interesse. Seguidamente, o sedutor ideal sintetiza o pensamento do outro numa frase memorável. É um criativo publicitário. Deixa o outro fascinado a pensar que foi o autor da frase, que a sua sabedoria vale ainda mais do que o próprio já suspeitava. O sedutor oferece ao interlocutor os “direitos de autor”. Torna-se mais que apreciado, torna-se desejado. O sedutor procura dar ao outro o centro do palco. Pontua o discurso dos outros com interjeições bem humoradas, por vezes paradoxais. O paradoxo é uma arte do sedutor. Num paradoxo podemos conter a interpretação que deixa ambos os antagonistas numa discussão com a firme certeza de que estamos exclusivamente do lado de cada um. Sem que nenhum possa verdadeiramente desmentir a
interpretação do outro. Um grande sedutor consegue deixar alguém insultado durante horas até que o outro compreenda o insulto. É pois fácil confundir um sedutor com um diletante. Puro engano. O desprendimento e a distracção são artifícios. O sedutor é um narciso incorrigível. Tem normalmente uma orientação bastante instrumental das suas relações. Um manipulador por excelência. O sedutor consegue “dar” ao outro a sensação de ganho; sobretudo quando desperta instintos maternais ou paternais. Consegue o verdadeiro ganho sem nunca dar a entender o que pretendia realmente. Nunca é demasiado óbvio. O sedutor pode também ser equivocado como a serenidade em pessoa. Em lugar de um calmo interlocutor, o sedutor é uma máquina de cálculos de utilidade marginal... Contudo, não é estritamente motivado pelo dinheiro ou por bens materiais. O sedutor é um fascinado pelo poder e pelo reconhecimento, que aceita com sobriedade e timidez, mesmo com embaraço.
Mas nem tudo é negativo no sedutor. É regra geral determinado e transpira auto-confiança e auto-estima. Mesmo que seja muito menor do que aparenta ser, a verdade é que o sedutor é um “achiever”. Acredita que é autor do seu
destino, possuindo aquilo que os psicólogos denominam por “locus” interno de controlo.
Um sedutor em escala denomina-se normalmente de líder, cujo carisma é baseado na capacidade de nos entusiasmar com futuros ao nosso alcance. Futuros claros e desafiantes, difíceis, mobilizadores. A troco de orgulho e satisfação mais imaterial. E faz sonhar... é um verdadeiro comerciante de sonhos.
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José Manuel Fonseca

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (2)

“Você acha que isto funciona?”

A resposta veio, sem ambiguidade, mas sem grande sofisticação do léxico. Foram dois socos que o “emissor” recebeu como satisfação para a sua interrogação. Nem sequer alguns sons, eventualmente recriadores dos fonemas que originalmente devem ter saído da garganta dos primeiros hominídeos que deram origem à fala humana, foram emitidos. Apenas uma agressão ao interlocutor. Mais tarde, descrevendo a cena, o “emissor”, perante terceiros, que não tinham testemunhado a situação, salientava o absurdo da reacção do agressor. Como poderia alguém reagir daquela forma àquela pergunta inócua, formulada em plácido tom de voz e sem inflexões de timbre? O individuo tinha de ser louco, e deveria ser exemplarmente punido. De facto, ninguém em bom juízo poderia entender como é que uma interrogação daquelas pode desencadear uma tal resposta.

E, no quadro do modelo cognitivo/cibernético de comunicação ficamos impotentes para explicar a situação. Não parece colocar-se a hipótese do agressor não ter compreendido a pergunta. Teremos de nos socorrer de uma outra hipótese, aquela que remete o “receptor” para uma área de patologia mental ou de defeito de carácter. Não será na área da comunicação humana, como mero mecanismo de “transmissão e transferência” de significados entre interlocutores que poderemos entender situação tão bizarra.

É claro que se pensarmos um pouco, poderemos, ainda no contexto da comunicação humana, ir um pouco mais fundo. Qual era a tónica daquela interrogação? O plácido tom de voz teria sido substituído por um ênfase? Seria o “isto”? Um objecto exterior, independente e indiferente, àquele a quem a pergunta era dirigida? Seria o “acha”? Implicando já uma subtil sugestão de possibilidades sobre as capacidades de decisão, avaliação e escolha do “receptor”? Assim do tipo, “não consegue perceber que “isto” não funciona?” Seria o “você”? Assim como quem diz, “você seu imbecil desde que foi concebido até ao momento em que cessar de respirar, que nunca conseguiu nem nunca conseguirá raciocinar de modo minimamente satisfatório?” E a linguagem corporal? A expressão facial? Reforçaria a teoria da placidez ou a teoria da repreensão insuportável?

E, o contexto situacional? Estaria esta interacção a decorrer em frente a uma audiência? Estaria o “receptor” em situação de perder a face? E, a história anterior de interacção entre estes dois seres? Teria sido pautada até então por “diálogos” deste ou daquele tipo? Como seria o típico quadro emocional quando aqueles dois seres trocavam vocábulos? Depois de considerarmos estas novas perguntas, talvez possamos não nos precipitar para patologias mais complicadas, nem pronunciar palavras de domínios linguísticos fora do contexto falado naquela instalação fabril onde testemunhei esta interacção humana.

Os processos de comunicação são frequentemente tidos como neutros e “assépticos”. Meros mecanismos de processamento de significados sobre realidades objectivas. Os problemas, neste quadro, ocorrem apenas em domínios semânticos e sintácticos, ou ainda na intromissão maçadora de “ruídos” que impedem a apropriação da totalidade da mensagem. Alegadamente, se estivermos na posse da linguagem certa, saberemos o que alguém quer dizer.
“- Meu, quantas batacas batem no teu Ozibisa?”, seria uma interrogação que deixaria os meus pais perplexos, não obstante constituir uma simples maneira de perguntar as horas no seio de uma das comunidades durante a minha adolescência. Portanto aos pais, aparentemente, bastaria conhecer a “linguagem” para entender os filhos...

Contudo, muitas vezes a comunicação torna-se prenhe de ambiguidades e fonte de equívocos, mesmo, talvez sobretudo, quando na superfície, todos os participantes são proficientes na linguagem que alegadamente todos “partilham”. Numa das comunidades em que me insiro, a dos gestores, que partilham uma curiosa linguagem, alguém pode afirmar com ar sério e austero:

“- A prévia hierarquização dos atributos do produto e sua adequação às necessidades e potenciais utilizações, é condição de sucesso no lançamento de novos produtos.”

Aceitemos que este enunciado constitui uma asserção indisputável no seio daquela disciplina. Só que aquela frase, tanto pode constituir uma recomendação para alguém que pretende aderir ao plano tecnológico, como uma critica velada ao departamento de marketing, como uma recriminação por um falhanço clamoroso do departamento de Novos Produtos, como uma frase cínica do director financeiro que secretamente se delicia com o tiro no pé do administrador. Para sabermos em concreto o que significa aquela frase necessitamos de muito mais que o que nos fornecem os modelos tradicionais de comunicação humana. Necessitamos de saber qual era o tom de voz, como era a linguagem corporal, o que estava por “trás” da frase, ou seja que história anterior decorreu, quem estava presente, quem não estava presente, se aquele tipo de frases pomposas pertence ao quotidiano daquela organização ou não. Precisamos de “pistas”. Então as “pistas” tornam-se parte dos nossos processos de comunicação. Então os processos de comunicação tornam-se processos sociais. Então os processos sociais tornam-se parte do significado que conferimos à nossa comunicação. Então a comunicação não pode mais ser uma mero mecanismo, tornando-se mais do que um meio. Torna-se numa das expressões de vida, e numa característica essencial da própria condição de ser humano e de estar vivo. E, estar vivo num determinado contexto, em que a vida vai sendo descrita e construída à medida das palavras que são inventadas e criadas para a descrever e viver.
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José Manuel Fonseca

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (1)

O Boato

Uma das trivialidades, talvez mesmo uma autêntica instituição, com que convivemos nos nossos quotidianos é o boato. Umas vezes insidioso e malévolo, outras vezes mais ligeiro e inócuo, quando não mesmo divertido. O boato, nem sempre resulta da mera expressão da cobardia e mesquinhez dos seus autores(as). Por vezes, pode ser um valioso indicador de mal estar social ou organizacional. Pode relevar de inveja mal contida mas, também, pode constituir um salutar mecanismo de escape a situações de verdadeira esquizofrenia organizacional ou social. Em geral, o boato proporciona uma forma barata de “corrigir” aspectos da realidade com que convivemos e nos desagradam. É um óptimo mecanismo de substituição: para a ineficácia e lentidão do sistema de justiça; para a “injustiça” no sistema de promoções no trabalho; para as pequenas e médias vinganças ou como alternativa para uma vida de trabalho honesto e abnegado!

Sem querer produzir uma taxonomia ou tipologia desta importante forma de comunicação humana, fiquemo-nos por dois exemplos meramente ilustrativos das situações anteriores. No primeiro caso, podemos falar de rumores sobre um determinado produto, como contendo substâncias tóxicas, de preferência com a sugestão que façam mal às crianças. Depois, espalha-se a insinuação através do mail, exemplificada com uma foto, retirada da net, de uma criança aparentemente afectada por uma qualquer doença horrível, junta-se a “certificação” que foi “um amigo” que nos avisou com base numa palestra, a que assistiu no Centro Esquimó de Cripto Genética, palestra essa, da autoria do ”conhecido e reputadíssimo Professor Immanuel Konrad”. O produto, provavelmente de qualquer concorrente nosso, contra o qual não conseguimos triunfar no mercado em termos nobres e dignos, sofrerá quase de certeza um repentino abaixamento de vendas, e o departamento de Marketing ou de Public Relations do concorrente lutará durante semanas pela recuperação da reputação, que provavelmente nunca mais será a mesma. Variantes deste instrumento de “correcção” da realidade, são os “assaltos” a carros nos sinais vermelhos, perpetrados por “romenos” segundo uma informação fidedigna de um “tenente” da policia de segurança pública. Raramente nos interrogamos se na PSP há patentes como tenente, capitão etc...

Neste era de franco progresso tecnológico, o mail, substituiu a mais velha técnica que era a da confidência, em absoluto e sagrado sigilo, que é solicitado pela alminha dos filhos, a uma pessoa que, sabíamos de antemão, trataria de pôr a circular a coisa em todo o escritório sede e nas filiais incluindo a da Kabardino Balkaria, em menos de cinco minutos. De facto, o advento da internet permitiu amplificar enormemente quer a rapidez de disseminação quer a amplitude geográfica dos danos provocados pelos boatos...

No segundo caso, mais benigno, e em particular para amantes de literatura policial ou de espionagem, pode deixar-se “esquecido” um dossiê crucial com o plano de actividade política de um qualquer grupo de pressão, por exemplo um grupo ambientalista. Presumivel e rapidamente o dossiê circulará até ao seu “legítimo” destino. Um infortunado estratego do governo perderá o seu tempo a antecipar acções que nunca estiveram planeadas, enquanto o grupo desencadeia acções espectaculares elsewhere. O estratego poderá, eventualmente, ter de procurar uma actividade mais proveitosa e interessante, alguns spin doctors serão chamados para o seu lugar e overall aumenta-se o emprego...

Todos já convivemos com os boatos mais ou menos sugestivos sobre a natureza e as estatísticas da sexualidade dos colegas de trabalho. Em geral, tratam-se apenas de projecções nos outros, de comportamentos que secretamente se desejariam ter... Há pessoas que vêm em todo o lado gente que subiu na “horizontal” e, fazem circular a sua versão miserável do sucesso alheio sempre atribuível à sorte ou à falta de vergonha. Enquanto, por oposição, o sucesso dos próprios se deve à excepcional perseverança e tenacidade que conduziu, claro está, a uma vida inteirinha de esmerado esforço sempre ético e ao sabor de todos os códigos deontológicos, mas, helas, sempre com um grau de reconhecimento largamente insuficiente, ou sempre marcado por aquele azar dos Távoras que nos acompanha, desde que nos conhecemos, e que nos cerceou o alcançar dos píncaros que amplamente merecemos...

Um dos erro mais comuns consiste no combate sem tréguas aos múltiplos boatos que assolam o interior de uma qualquer organização ou que partem de concorrentes. Paradoxalmente, a credibilização do boato começa pelos insistentes e por vezes exaltados desmentidos...

Se, por exemplo, corre o rumor que a empresa passa por aflições financeiras, não sendo verdadeiras, o mero esquecimento do funcionário de encomendar café para a máquina que está na copa, torna-se uma evidência “científica” que corrobora o boato. Se, por causa disso, um qualquer director decide que se vai comprar café de lote ainda melhor e mais caro, como forma de demonstrar que pelo contrário a empresa até atravessa um momento cheio de cash flow, mais uma evidência do descalabro de Sisífo das contas da empresa... ouvir-se-á, informalmente em pequenos grupos junto à bendita máquina do café - “ainda por cima querem atirar-nos poeira para os olhos”...

Au contraire, uma boa solução é a de amplificar o boato exagerando-o até ao limite do inverosímil... Não só a empresa está à beira do abismo, como já a partir de amanhã teremos de iniciar uma campanha de recolha de fundos a nível nacional, eventualmente, o património imaterial da empresa será colocado à venda na feira de Carcavelos, alguns funcionários serão deslocados para Trafalgar Square para peditórios e outros funcionários terão de trazer de suas casas objectos de valor que possam ser vendidos em quermesses dominicais no Campo das Cebolas e por aí adiante...

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José Manuel Fonseca

terça-feira, janeiro 09, 2007

O aquário

O aquário era uma sala com uma vidraça, em toda a sua extensão, situada ao longo de um amplo corredor. Era numa empresa e no aquário eram colocados os indesejáveis, os excedentes, os supranumerários. Ali ficavam expostos aos mirones dos "outros" dos ocupados com o expediente, dos "úteis" à organização, dos que decidiam, dos que eram cruciais e insubstituiveis. Era uma prova de resistência psicológica. Ser olhado com aberto desdém, ou de lado disfarçadamente, ou com tristeza, era uma provação inevitável. Alguns cediam e demitiam-se, poupando à empresa a indemnização. Outros, aguentavam a coisa durante anos. A saúde mental ia pagando, mas cerravam os dentes e seguravam alguma sanidade com a raiva. Muitos ficavam prisioneiros do aquário imaginando mundos exteriores adversos e mesmo ameaçadores, inventado para si próprios impossibilidades de felicidade fora daquela prisão psicótica. Raros eram os que um dia enfiaram uma cadeira nos cornos de quem os metera no aquário antes de seguir com a vida alegremente noutro qualquer sitio.

Há muiots anos ouvi da boca de um conhecido dirigente associativo a expressão prateleira, e de como nas empresas dele tinha carpinteiros que podiam fazer mais estantes... A ideia era a mesma. Esperar que os “emprateleirados” cedessem e se demitissem. Era mais barato e evitava-se a questão do tribunal de trabalho, que esses sacanas decidem sempre a favor do empregado.

Vem isto a propósito de uma estória que vi hoje na imprensa e nos blogues de um administrador ostracizado na CP.

Na altura, há décadas, não entendia o racional da coisa. Aquários, prateleiras, pareciam-me formas imbecis e cobardolas de gerir pessoas. Hoje percebo a “verdade” da coisa. Não se tratava só da vantagem financeira. Que agora já nem existe verdadeiramente. Hoje pode-se despedir uma pessoa sem grande problema. A questão é outra.

Entre nós não basta expulsar o outro. Não basta triunfar sobre o outro. É preciso conseguir humilhá-lo. Esmagá-lo. Se possível em frente à sua família.

domingo, janeiro 07, 2007

Momentos

Há coisas que afloram quando há momentos de ruptura ou de fricção. Uma das coisas mais ou menos bizarras que vi discutidas é a questão da identificação das mulheres que decidam abortar no caso do sim vencer, no caso de o fazerem em hospitais públicos. Não entendi bem a coisa. Deveriam ser anónimos esses actos? Não registados? Como se não existissem? Ou o facto de serem registados implica imediatamente a publicação em Diário da República da identidade das mulheres que abortaram? Ou pior, a publicação da fotografia de corpo inteiro no 24 horas. Não entendi a "surpresa" dos defensores do sim...

É que eu não me recordo de ter visto publicado em lado nenhum a lista dos gajos que removeram testículos, ou que levaram com a dose cavalar de penicilina porque apanharam uma doença sexualmente transmissível, ou que foram assistidos na urgência deste ou daquele hospital com garrafas enfiadas em partes da anatomia que são um pouco estranhas, até aquela do avô que tinha o biberon do neto enfiado no cu... ou a lista dos gajos a quem foram removidas as amigdalas, ou a lista dos gajos operados às cataratas, ou a lista dos gajos submetidos a operações à visícula, ou a lista dos gajos que são bipolares (lista que por certo deixaria a malta com a boca francamente aberta...).... Parece que os médicos e os hospitais são mesmo obrigados a proteger este tipo de informação, não andando a semear aos quatro ventos este tipo de coisas....

Depois há a questão do financiamento. Os defensores do não avançaram com esta avenida. Os impostos de todos não deveriam servir para pagar os "caprichos" de algumas mulheres. Pode-se colocar a questão dos fumadores pagarem do próprio bolso a quimioterapia por tumores de pequenas células nos pulmões. Ou os tipos como eu que se descuidaram com as dislipidémias pagarem as cirurgias cardio-toráxicas e todos os exames que agora decorrem do controlo da coisa para o futuro. Ou os tipos que apanham sida por comportamentos de risco. Porque é que essa gente não pagam os tratamentos? E os toxicodependentes? Porque é que a sociedade em geral e os meus impostos em particular tem de pagar os tratamentos a essa gente? Bom, a senda dos argumentos demagógicos e mesmo argumentos filhos da puta não tem fim. Pode-se navegar essa água, cavalgar esse caminho sem problemas.

sábado, janeiro 06, 2007

Sentimento

Parece que o Engenheiro Cravinho vai aproveitar para ir para Inglaterra. E, não faltam já as vozes de acusação. Com libelos assorted. De facto não há míngua de escroques nesta terra. Não obstante, conhecer mal o Engenheiro, sempre me pareceu que a ocupar uma posição semelhante à que vai ocupar, dificilmente alguém poderia fazer paralelos com outras criaturas que andam por aí em lugares inverosímeis. Ou seja, parece-me que o Cravinho merece a posição e faz ele muito bem em aproveitar para se reformar por ali. Outros de menor, inacreditavelmente menor merecimento, nunca hesitaram e tem aproveitado em doses obscenas e cavalares. E, porque carga de água é que o Cravinho deveria combater, armado em D. Quixote, a corrupção? Single handed como nos filmes americanos de heróis à prova de bala.

Ele que se vá e nos deixe cá com o assunto. Se há fama que ele leva é a de nunca ter ficado ou aceite dinheiro que não era dele. O que neste país é muito singelo e poucos se podem orgulhar de ter essa fama. Ainda hoje saiu uma noticia no Público que eu coloquei no Anarca e que nos deixa bastante animados sobre esta coisa de combates à corrupção...

sexta-feira, janeiro 05, 2007

O Paradigma

Devo desde já confessar que li em três segundos ou eventualmente quatro. Dificilmente a expressão "chutar para canto" encontra melhor ilustração, e, claro que a representante do colégio de psiquaitria dificilmente podia chutar para golo em qualquer das balizas...

Em todo o caso não há doutrina sobre esta questão. Na biblia da psiquiatria uma coisa chamada DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da American Psychiatric Association não há lá nada que se refira, especificamente, a sofrimento por rejeição de uma gravidez. E, é óbvio que estas coisas não são de cariz grupal. Não há lugar aqui para molhadas sociológicas...

Seria de esperar que "cada caso é um caso" fosse expressão dominante numa questão destas. Em psiquiatria não se faz uma análise ao sangue e vem lá o tamanho da "neurose" ou da "paranóia" ou do "sofrimento psíquico"... sobretudo em coisas nunca tipificadas ....

Como exercício de jornalismo pode bem ser louvável a atitude...como contributo para o debate é pouco mais que inútil. Em Espanha aparentemente utilizam aquela "porta" para resolver de forma pseudo científica o problema e contornar a fricção ideológica, evitando o triste espectáculo e a violência da exposição pública das mulheres apanhadas a abortar. Se um psiquiatra disser que "esta mulher em concreto está num sofrimento inultrapassável porque rejeita a criança que tem no útero", até por corporativismo, dificilmente, outro psiquiatra virá dizer "não senhora, essa mulher em concreto está a fingir", a não ser por preconceito ideológico. Não há TAC ne raio X nem análise às enzimas que permita medir a coisa. Trazer os psiquiatras não ajuda em nada nem um lado nem outro. Trazer os geneticistas idem. Trazer os bioquímicos idem. Trazer os advogados idem.

E os argumentos, muitas vezes, de um lado e de outro, são mesmo patéticos. E por vezes muito desonestos. Mas é assim a natureza humana, neste e noutros assuntos. A escolha é sobretudo politica e civilizacional. Tem a ver com a ideia de sociedade e de forma de relação que queremos ter. Por isso é que vai votar pouca gente. Porque a maior parte da malta quer ver a novela das sete e sabe lá que tipo de sociedade é que quer...

Portanto

somos um país sem coletes de salvação e, em que os helicópteros demoram tempo a aquecer os motores...
um país de marialvas que circulam em andaimes sem capacetes nem arnês e, em que as ambulâncias demoram tempo demais a chegar...um país em que ninguém limpa as matas nem faz corta fogos e, depois os bombeiros demoram tempo demais a chegar...um país em que os pais estão sempre ausentes e, os professores não prestam e chumbamos todos a matemática...

mas temos o Dakkar a sair hoje daqui e temos coisa modernas cheias de microchips...

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Sinais

Ora bem. Não havia necessidade. É mesmo humilhante. Pelo menos para os envolvidos na pequena estória. Noutra secção desta área de criaturas ficámos a saber que o senhor Veiga afinal pode estar inocente. Afinal o jogador pode ter recebido aquilo que ninguém recebera. Por outro lado pessoas acusadas ou suspeitas, é sempre difícil precisar a semântica e os adjectivos destas hermeneuticas do direito, mas dizia eu, pessoas no mínimo envolvidas naquela curiosa dinâmica social que vai pelo nome de "apito dourado", continuam a pertencer à "entourage" daquele senhor Gilberto que nos favorece com mais uns anos de enorme sacrifício pessoal à frente dos destinos do pontapé na bola.

Eu nem consigo suportar a ideia do sofrimento pessoal que esta criatura enfrenta quaotidianamente. Por mim dava-lhe dispensa dessa missão tão espinhosa. E, quiçá, dos óculos de sol também.

Entretanto, assisti, confesso que um bocado aparvalhado, a uma espécie de conferência de imprensa em que um senhor com bigode, que preside a um clube de que sou sócio, exemplificar como se desenvolve com magnifica delicadeza uma paranóia em estado bacteriologicamente puro com a necessária complementaridade de uma vitimização desempenhada de modo a competir para os Gremmy. Para apreciadores da teoria de atribuição causal também ficaram exemplificados variadíssimos postulados. Um verdadeiro case study.

Começo desde já por saudar os titãs

que por aqui andam. E que por ali também circulam. Portugal, é aliás, um país de titãs. E de seres arcanos. Até acho espantoso como é que num país tão pequenino consegue existir espaço para tanto ego gigantesco. Provavelmente o David Deutsch tem toda a razão. Existem multiversos, e, só assim se explica que possam coexistir, tantos seres maravilhosos neste cantinho, sem que os egos se envolvam em confrontos terríficos de consequências funestas e telúricas. Muito raramente estes seres se afligem uns aos outros. Em geral a coisa passa, por mecanismos primários de defesa, como por diálogos de surdos, por manifestações inóquas de adolescências mal resolvidas, por querelas sem repercussão física.

Em todo o caso devo declarar já a minha reverência perante a profundidade desses seres. Profundidade e amplitude.

Este blogue vai ser seríssimo

e vai tratar, sobretudo, de coisas com distribuição normal como por exemplo as moscas.
Verdadeiramente democrático este fenómeno do acesso às moscas. Ricos e pobres, velhos e novos, homens e mulheres. Todos temos acesso às moscas.