sexta-feira, novembro 25, 2011

Perplexidades? talvez não...

Parece paradoxal a popularidade que gozam todos os que se preparam para governar ou governam países a que se impõem medidas verdadeiramente draconianas de austeridade e, que de modo notório, advêm da necessidade de pagar dívidas que em boa medida resultaram da ilusão do juro baixo (promovida deliberadamente) e da "necessidade" de resgatar o sector financeiro que nos conduziu a uma situação insustentável. A Esquerda que se prepararia para capitalizar o descontentamento gerado pela imposição aos pagadores de impostos e "classes trabalhadoras" (os 99%) contra a mais brutal desigualdade na distribuição da riqueza e por cúmulo do esforço de recuperação, parece surpresa pela "incongruência" desta aceitação (mesmo admitindo uma manipulação dos números pelas agências de inquéritos e pela imprensa que amplifica os resultados, na verdade convêm reflectir sobre a tendência...).

Mas, repare-se. A raça humana chegou aqui, ao dia de hoje, com esperança de vida até ao Alzheimer e ao cancro final, no seio desta formidável civilização tecnológica (formidável no sentido de espantosa não necessariamente de boa) mercê de um mecanismo que nos ajuda a compreender certa dose de conformismo, resignação e parodoxo. É que contra toda a probabilidade objectiva de insucesso os seres humanos persistem arreigados a uma coisa chamada esperança que por vezes raia o delírio. Mas sem esse irrealismo já teríamos perecido. Desistido. Mesmo no seio da mais brutal exploração, da maior iniquidade as pessoas agarram-se a uma "delusion" como tábua de salvação. Não podem aliás dar-se ao luxo de perder a ...fé num dia melhor algures lá para a frente. Sem essa esperança, "objectivamente" irrealista, o ser humano enfrentaria a futilidade da sua existência. Essa hipótese não é razoável.

No quadro desta violenta austeridade que viola as expectativas construídas ao longo das últimas décadas e mesmo século, as pessoas readaptam as suas expectativas. Mantêm a esperança de sair da crise. É aliás oferecido um horizonte próximo. Pode ser uma desonestidade intelectual mas é a percepção que conta não a "realidade" "objectiva".

Não deixa de ser paradoxal também que a Esquerda necessite da desesperança para crescer. Mas propõe a esquerda em geral (não o PS que é um fiel prócere do consenso de Washington e do capitalismo de casino que dele emergiu com particular vigor) propõe alguma esperança nova? Que compreenda os horizontes prosaicos em que as pessoas raciocinam em teros do que realmente querem e aspiram? Não me parece. Propõem uma "sociedade mais justa". Isto é uma mera abstracção com o problema de terem existido e existirem "sociedades mais justas". Será que são atractivas? E se não são já reflectiram porque não o são?

Mais. A esperança é uma realidade individual. Não há esperança de "classe". As pessoas não são naturalmente solidárias em abstracto. São altruístas com situações próximas. Não em "atitude". A atitude não é um preditor do comportamento. Em face do problema, do drama de outro ser humano, as pessoas podem revelar o seu melhor. Em face de um desígnio teleológico de "justiça social" as pessoas não tem noção instrumental da utilidade dessa praxis. As pessoas tem esperança que os filhos atinjam melhores condições materiais de vida que elas próprias. Não sei se estarão preocupadas com os filhos dos outros no Quizirguistão.

(a continuar)

domingo, novembro 06, 2011

O país das tampinhas de plástico

Quando eu era jovem adulto andei durante algum tempo a entregar comida a gente que dormia pelas ruas de Lisboa. Mais tarde, denominaram-se estas pessoas como sem abrigo. Na altura aquela actividade não tinha nome. Agora tem a nobreza (a finesse e a moda...) do voluntariado. Na altura, também não era caridade, coisa que sempre me repugnou, mas tão somente uma espécie de imperativo que se sentia de participar no alívio da miséria de outros seres humanos que por esta ou aquela razão tinham desistido ou foram forçados a desistir de ficar à tona numa sociedade que, já nessa altura, se começava a seduzir pelo consumo e em que a medida das pessoas não era o que eram mas o que pareciam ser e, sobretudo o que pareciam ter. Na altura, a actividade reunia pessoas de todos os caminhos da vida, nas mais das vezes organizadas por alguma estrutura amadora de alguma paróquia mas que aceitava ateus como eu, e nenhum de nós fazia grande julgamento nem dos que davam nem dos que aceitavam.

Entretanto a sociedade evoluiu. Ou pelo menos é que parece. O modelo social democrata parece ter sido arredado pelo consenso de Washington como salientou o Judt. Perdemos o fio da narrativa como muito bem arguiu o Sennett. E desembocámos numa sociedade rendida aos proxenetas da "indústria" financeira e aos seus ditames. Reféns de axiomas mais que risíveis. De sofismas que vários próceres nos afiançam ser o fim da história. E, no seio de toda esta imperativa "disciplina orçamental" devemos ter perdido o norte. Ou quem nos comanda mais propriamente, perdeu o sentido do Outro. Ou o sentido de ser apenas humano. No altar da eficiência, da competitividade querem que fique o sangue da nossa compaixão. Mas nós também nos perdemos na indiferença. Mesmo que seja chique e fino ser "solidário" um fim de semana por ano. Realmente nós oferecemos facilmente, demasiado facilmente, o sangue da nossa compaixão a troco de um gadget de plástico com luzinhas.

Levámos séculos de associações, de guildas, de corporações, de sindicatos, de mutualidades, de caixas de previdência, de misericórdias a construir laços de perpetuação da solidariedade, a robustecer as alianças entre cada ser, cada família por forma a repartirmos um pouco melhor o produto do nosso esforço e sobretudo a arranjar maneiras de todos terem um pouco do bolo.

Agora dizem-nos, sem dizer, com aquela hipocrisia disfarçada de bondade e de superioridade, que esse tempo acabou e que , basicamente, é cada um por si. Ou em caso de necessidade que quem precise meta no facebook um pedido para voluntários recolherem tampinhas de plástico no caso do nosso filho ter uma doença crónica. E rezar. Rezar muito para que o preço do plástico não desça nos mercados.

Puta que os pariu.