domingo, janeiro 26, 2014

Da liberdade e da individualidade

O que de mais nobre fornecemos ao Mundo, por aqui na Europa, foi a existência de um valor supremo de Liberdade e o princípio que um individuo é um ser único insusbtituível cuja dignidade é inegociável e irrevogável. Em face das agruras e obstáculos da vida, provenientes quer da dureza do meio quer da nossa inquebrantável tenacidade em progredir e mudar a nossa condição de existência, fomos descobrindo que os laços de coooperação nos permitiam evoluir e consolidar melhores condições de existência, de reprodução da nossa espécie e de preservação do saber que íamos passando aos que nos sucediam.

Durante séculos fomos criando teias de cumplicidade, fraternidade e solidariedade que nos permitiram, no contexto do valor e do princípio mencionados, elevarmo-nos acima das bestas irracionais e das pulsões mais primitivas. Frequentemente alguns de nós regressam ou parecem preferir o contexto da tentação em dominar ou subjugar parte dos outros por forma a acumular maior conforto e bem estar de qualquer espécie. Há quem não se sinta bem com um óptimo de Nash mais equilibrado. E surgem as possibilidades de retorno a um egoísmo primal em que triunfa o forte sobre o fraco, a frieza sobre o escrupúlo e gula sobre a compaixão. É um aparente triunfo da Liberdade do único que se impõe aos demais numa luxúria de equívocos de individualismo, como se no final só pudesse existir um único. Noutras circunstâncias, e de modo quase simétrico, periodicamente surge a tentação de substituir a solidariedade genuína e expontânea, com o ordenamento hierarquizado de submissões e lealdades baseadas não na fraternidade mas no medo e na falsa sensação de segurança fornecida pelo vínculo desresponsabilizador da obediência cega. Em última instância o grupo dilui a identidade individual e esmaga a liberdade através da acção instrumentalizada em favor do absurdo injustificado e injustificável. Como se no final só pudesse existir um único amorfo indistrinçável dos demais.

Em ambos os casos derrotam-se a liberdade e a individualidade. Nos extremos temos o pesadelo dum egoismo que destrói o sentimento de identificação com o outro ou um grupo que esmaga todos até que ninguém possuí uma identidade única. Actualmente parecemos divididos entre estes dois pesadelos. E com pouco vislumbre de remissão. 

quinta-feira, janeiro 02, 2014

para que não se perca na espuma ...




OPINIÃO

Em busca da Europa perdida

Como se devia ter feito há 80 anos, é preciso hoje mergulhar nos problemas, chamar as coisas pelos seus nomes, identificar o adversário real, transformar a crise em conflito.




Há precisamente oitenta anos, no terrível período que se seguiu à primeira Grande Guerra, à crise de 1929 e à Grande Depressão, quando a Europa parecia de novo "um arquipélago de antagonismos e conflitos", escreveu Bento de Jesus Caraça um lúcido artigo nas páginas do semanário Globo, intitulado “Crepúsculo da Europa”. Nele afirmava: “A Europa não tem de que queixar-se: tal é o resultado lógico e natural da sua obra…Dela saíram as sementes do que vai pelo mundo: foi dela que partiram os descobridores e os colonizadores, os pregadores e os traficantes. A Europa criou o cristianismo e o capitalismo, a mecânica e as ideologias, as armas aperfeiçoadas e o princípio das nacionalidades… Se hoje o controle do mundo lhe escapa, não tem senão que resignar-se – como os velhos cansados se resignam a passar os símbolos da autoridade aos mais novos.”
Era por demais evidente que o caminho que se estava a seguir então era errado. E que a busca de um “espírito europeu” – ou de uma “identidade europeia” como diríamos hoje – não era mais do que uma quimera, tão fútil como o de definir uma identidade “asiática” ou “americana”, ou “africana”… um exercício vácuo, um projeto ilusório para enganar os incautos. O que era preciso era mergulhar nos problemas, sem preconceitos, para se poder agir.
Como sabemos, não foi este o rumo escolhido. A Europa foi atraída para uma segunda Grande Guerra, da qual saiu derrotada, devastada, dividida entre uma aliança com os Estados Unidos a ocidente e um pacto com a União Soviética a leste. A obsessão americana com a segurança bem como o terror de que os soviéticos chegassem às margens do Atlântico induziu as nações europeias aliadas, em reconstrução sob a alçada do Plano Marshall, a reagruparem-se em comunidade económica. A propaganda americana contra a ameaça do comunismo centrava-se sobre o conceito de mundo livre, defensor da democracia, em luta pelos direitos humanos. A palavra “capitalismo” desapareceu do domínio público e da política. E a esquerda social-democrata viu realizado o seu sonho de conquistar o poder. A grande promessa – transformar o mundo – que carregava no seu ventre desde o século XIX iria finalmente ser cumprida. De facto, a esquerda criou o Estado-providência nas suas várias declinações nacionais, mas foi basicamente surpreendida e dizimada pelas “crises do petróleo” e pela globalização financeira e económica que se lhes seguiram. Na realidade, a esquerda não transformara o mundo. Esquecera-se de que existia o capitalismo e de que o sistema-mundo capitalista em evolução não tolerava pretensões de hegemonia militarmente desestruturadas.
A construção europeia entrou num impasse que apenas as novas adesões escondiam. Mas o golpe fatal na ilusão de uma europa soberana resultou da implosão do bloco soviético. A partir daí, a política dos europeístas consistiu essencialmente em “atirar para a frente”, uma versão cosmopolita de “todos ao molhe e fé em Deus”, na vã esperança de que os problemas que surgissem teriam o condão de reforçar a coesão das nações europeias e robustecer a União. A Europa e a esquerda tinham-se esquecido de que o capitalismo continuava a existir e a evoluir. Veio a crise de 2007 e 2008, que ainda não nos largou, e viu-se o descalabro em que caímos. A democracia representativa entrou no vórtice da crise. Esta é uma das primeiras perceções que avultam de um projeto de investigação e reflexão sobre a crise europeia iniciado recentemente pela Universidade de Cambridge e pela Fundação Maison des Sciences de l’Homme, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.
A crise da Europa é também o resultado de uma leitura errada da história. Em primeiro lugar, acreditou-se que «é possível gerir a transição» como se as nações fossem soberanas no sentido em que se aplicava a palavra “soberania” no século XIX! A “governança” não foi introduzida no vocabulário político por ingenuidade… Em segundo lugar, admitiu-se piamente que «as economias convergem no decorrer do tempo» ignorando que o capitalismo tem sempre, pelo contrário, um efeito de “polarização”, provocando divergências na evolução das economias do sistema-mundo e jogando com elas com o objetivo de acumular cada vez mais capital.
Não havia assim qualquer hipótese de o voluntarismo e os instrumentos da esquerda (os Estados-providência principalmente) resistirem ao confronto com a política de direita e a sua retórica de liberalização, desregulação e privatização. Talvez porque o campo da direita se tenha tornado internacional, seguindo os ditames do capitalismo informacional de hoje, ao passo que a esquerda se foi fragmentando e acantonando, tentando defender o que resta da soberania (os territórios) das nações, ou mesmo atirando-se para a frente se a oportunidade parece espreitar. Mas é claro que assim também não irá longe.
Como se devia ter feito há 80 anos, é preciso hoje inescapavelmente mergulhar nos problemas, chamar as coisas pelos seus nomes, identificar o adversário real, transformar a crise em conflito, procurar as alianças onde existem as solidariedades que vão cimentar o mundo novo. Não onde os interesses do mundo-espetáculo nos pretendem acorrentar.
Professor universitário, Físico