terça-feira, janeiro 25, 2022

Tomorrow Never Comes

Ao longo da vida tive a minha quota razoável de "amanhãs que cantam". Muito novo envolvi-me com o conceito propriamente dito. E andei, como prócere do "homem novo" e do "amanhã radioso e inevitável" a fazer proselitismo. Verifiquei, nessa ocasião, que para alguns dos camaradas  o amanhã parecia já cantar e de um modo um pouco...dir-se-ia ...enviesado. Aborreci-me cedo. Desencantei-me cedo. As datchas nunca pareciam ser para todos e o amahã era muito radioso para alguns, pouco diferentes dos que eles criticavam, e ao fim ao cabo, iam apenas substituir.

É claro que todos os, diversos, amanhãs que cantam dependem inexoravelmente de "if we all pull together as a team". Se todos pensarmos da mesma forma, formos uma mole de vontades únicas, se todos agirmos como um ... qualquer futuro é sempre inelutável. Este é, aliás, o sonho e promessa do euroasianismo no presente. O retorno à eficiência do império de Xerxes e Dario. A promessa chinesa no século XXI. A promessa russa do inicio do século XX. A promessa de qualquer sopro totalitário. Um futuro "risonho" com a mesma anedota contada vezes sem fim. A anedota autorizada. 

Felizmente, pelo menos para mim, na Europa, desde a Grécia e Roma, a ideia de Europa, opuseram-se a esse pesadelo de ausência de atrito e de fricção social, identitária e ideológica. Felizmente, existe a redundância do debate. A pluralidade. O "desperdício" de outros modos de ver. Outros ângulos. Outras cores outros óculos outros paladares outros sons. Alternativas. Riqueza portanto. 



Mas o caminho do amanhã que canta, por certo uma ou outra qualquer canção, é sempre apelativo porque comporta tranquilidade. Segurança, Certeza. Meramente ilusórias, mas ainda assim a sereia é sempre cantadora de uma bela melodia que encanta. E nunca faltam à chamada os que vão no canto da sereia. E ninca faltam razões para a sereia cantar. 

A liberdade é uma coisa maçadora porque é individual. E solitária. E com ela vem a responsabilidade individual. Ainda que seja para, depois, negociarmos os contrato social que nos permitirá a todos um better off que não exclui ninguém. Mas partimos da liberdade. De um lugar solitário de pessoas adultas e firmes. E nada é gratuito e nada é sem espinhas. 

Depois, passei para os amanhãs que cantam empresariais. Muito semelhantes aos de onde vim, e igualmente irrespiráveis. Talvez menos grandiosos e mais facilmente risíveis. De novo a retórica da múscia dos Pink Floyd "if we all pull together as a team". E se todos fizermos o trade  do walk on part in the war for a lead role in a cage... 

O mais hilariante nos amanhãs que cantam empresariais é que nos fornecem prémios de plásico  e bónus de páscoa em amêndoas amargas pela nossa alma. E badges em latão para meter ao peito. Por esta extraordinária "aventura" empresarial em que somos bem vindos pelo menos até à próxima quarta feira em que sai lista de redundantes e rescisões. Se (ao menos) nos unirmos para fazer com que a "nossa" marca de pastéis de bacalhau congelados for a primeira o mundo será a nossa ostra. 

O amnhã que canta é cada vez mais simplório e de consumo rápido. Célere, breve, etéreo e levezinho. Insutentável. Exige adoração e não reflexão. Não admite objecção. 

Um dos problemas com o amanhã que canta que é inadiável, impreterível é que reduz o passado a uma colecção de erros. De que nos devemos envergonhar. 

O maior talvez seja prosaico e simples. Um amanhã que canta e nos une a todos nas mais das vezes impede-nos de ver o que no presente já é belo. O que no passado já nos deliciou e deixou espantados ou emocionados. O dia de hoje é quase sempre formidável e se escutarmos o som é usualmente envolvente.


(to be continued)


sábado, novembro 06, 2021

Conto de Natal

Admirável e recorrente mundo velho 

Paulatinamente o mundo tem vindo a inverter as polaridades. A esquerda torna-se progressivamente mas decididamente totalitária e, a direita, de modo bizarro, torna-se contestatária da ordem que as elites pretendem impor à carneirada.

O controlo social avançou muitíssimo nos ultimos meses. Por causa da pandemia, e agora por causa da crise do clima, reforça-se o número e tipo de "iniciativas" e experiências como que apalpando o terreno. Para já, sobretudo, de "comunicação" para ver a "sensibilidade" da populaça. 

As distopias possiveis são interessantes. A alimentação como prazer hedonico possivelmente será objecto de "culpa" e de vergonha. Tal como viajar será um pecado inominável e um desejo a reprimir, sentir vontade de ir a um parque distante será um crime contra Gaia. Quando muito umas colónias de férias consignadas de tres em tres anos se o "crédito social" for francamente positivo. Talvez num futuro muito próximo a populaça (de que a classe média já nem se distingue...) veja o seu "direito" a comer carne fortemente restringido. Possivelemnte até os animais predadores serão sujeitos a "recondicionamento" para abandonarem esses (maus) hábitos heteronormativos patriarcais e tóxicos. Talvez no inicio a "carne artificial" possa ser uma alternativa mas em breve a dieta será mais crua e seca. Em nome do planeta. Largas plantações de soja e avocados tornarão o solo infértil consumirão água em excesso e colocarão a questão final da possibilidade do Malthus triunfar. Um eugenismo bondoso que "libertará" os pobres de tão nefasta existência. A procriação cessará. Apenas as classes de cidadãos com cognição e motricidade suficiente serão reproduzidos in vitro e gestados por seres com uteros cuja designação será oficialmente de criaturas com corrimentos sanguineos mensais e com aptidão para amamentação. 

Apenas as "elites" prosseguirão o caminho da liberdade porque sim. Comerão o que lhes aprouver, circularão de avião ou automóvel (eléctrico e auto pilotado) enquanto os demais farão turismo virtual, e viverão sem grande mobilidade geográfica a não ser que sejam "requisitados" para laborar noutro sitio qualquer. Talvez se possa administrar a esperança de ascender. Um elitemilhões sorteado cada mês.  

Além de passaportes sanitários para ir para o trabalho, e de sistemas de pontos que possibilitarão algum fim de semana em resorts como prémio pelo conformismo, a esperança será devidamente controlada em ilusão e administrada em "raspadinhas". Um bife numa raspadinha em cada 18 milhões de raspadinhas. Uma ida à barragem de Montargil em cada 25 milhões. Um shot de alcool em cada 300 milhões de raspadinhas. Um cigarro se o nivel acumulado de créditos sociais atingir os setecentos milhões de pontos. 

Aspectos mais negativos da natureza humana como os resquícios de competitividade e outros defeitos do homem branco continuarão a ser sublimados em apoio a "clubes" de desportos que permitam espectáculo quase total e permitam o adequado "uso" e gestão da agressividade. Ao fim ao cabo a natureza humana é o que é, e demorará a que uma terapia genética garanta um ser sem pulsões mas ainda assim activo e trabalhador e com cognição suficiente para ser útil. 

A sociedade terá apenas o tempo do aqui e agora. 

O que se observa neste momento em todo o lado, e mormente nos sitios onde a "culpa" é um mecanismo de gestão bastante eficaz (no ocidente branco (judaico cristão - mesmo nas suas variantes calvinistas) em particular, nos outros sitios este mecanismo é pouco eficaz...) é que se tornou extraordinariamente fácil mobilizar a multidão contra a dissensão. Elicitar a sanha da "imensa maioria" contra os que meramente duvidam. A introdução de medidas absurdas, há anos atrás, parece agora quase sem atrito. O nivel de aceitação do que seria bizarro parece pacífico. Assistimos até à "exigência" de medidas mais duras e punitivas por parte dos que cedem com orgulho a sua liberdade. 

Deram à costa possibilidades de as pessoas serem controladas todo o tempo em todo os lugares. Com quem estão, como estão, de onde vieram para onde se deslocam, o que estão a fazer, o que fizeram. Com solicitações alietórias, imprevisiveis de demonstração do que se passa naquele momento e lugar através de selfies com 1 minuto para serem tiradas e respectivo upload. Em caso de "não conformidade" perda de pontos no sistema de rating e avaliação do comportamento. Punição em caso de reincidência. Os números de aceitação desta forma são surpreendentes. A desejabilidade social deve deixar de boca aberta os que as sugeriram possivlemente como fronteiras do absurdo. Afinal o rebanho é mais obediente e cobarde do que se imaginava. 

Nem será preciso soma. 

As escassas dezenas de dissidentes serão facilmente esmagadas. Desde logo a natureza babeliana da dissidência assegura que a unidade politica dessa gente é quase impossível. Em todo o caso pouco pragmática. Pode-se fazer uma experiência isolando alguns numa região remota. O mais natural é que se destruam entre si. A natureza paranoica de muita da dissensão encarregar-se-á de criar novos inimigos novas ameaças na ausência da contestação original ao sistema de controlo claustrofóbico. Liquidar-se-ão uns aos outros. 


sábado, junho 19, 2021

“Opá, educa-te. Lê um livro”

 

Esta é uma das conclusões habituais das interacções no Twitter. Com esta sentença põe-se termo a trocas de insultos, sequências de falácias ad hominem e outras atribulações da retórica contemporânea para pessoas apressadas e que pré-classificaram os seus interlocutores virtuais como bestas ou pior. Em geral, depois deste expletivo, o contendor retira-se vitorioso, sublinhado a renuncia à discussão, usualmente com o outro classificado como “porco”, “estúpido”, “facho” ou “esquerdalho”.

 

Prevalece uma importante questão. Mas, qual livro?

 

Por enquanto não consegui vislumbrar uma resposta adequada a este mistério. Não obstante, cresce o número de adolescentes que se aventuram ao longo desta curiosa avenida. “Educa-te. Lê um livro”. Uma espécie de tirocínio para mais tarde aparecerem no Linkedin como “Life Coach”, possivelmente com base na extraordinária experiência acumulada até à sua provecta idade de 23 anos.

 

As outras “trends” estatisticamente salientes, nos “diálogos” agressivos do Twitter, são também sintoma da pós modernidade que finalmente desagua entre nós.  A desqualificação dos outros porque são “velhos”, “boomers” ou outra forma qualquer de sublinhar que não são do tempo dos memes, mas da pré-história é um valor firme. Sem cultura e sem sofisticação, labregos que nunca foram em Erasmus e não sabem quem é a Minaj. Há um confronto entre os publicadores de fotos de gatinhos no facebook  e a geração que “instagrama” a sua existência com, natural, prevalência dos portadores do futuro. A geração ainda mais qualificada de sempre.

 

O outro vector popular que prevalece e se torna quase esmagador é o do âmbito do “mansplaining”. É um terreno divertido que faz lembrar aquele jogo do tempo inicial do DOS. O Minesweeper. Ao fim de duas interjeições a probabilidade de um gajo (particularmente se for branco) ser mandado calar tende para o valor esperado da certeza. Desde que existam duas interlocutoras praticantes da modalidade, quase tudo o que um individuo diga é sobranceiro, arrogante e desnecessário. Todos os dias vejo pobres coitados a caírem no ardil. Espalharem-se ao comprido. Alguns são idiotas. Explicar coisas a mulheres sobre dores menstruais é uma óbvia patetice. Mas dai em diante a amplitude dos assuntos que são exclusivamente femininos torna-se uma mancha de óleo que não pára de absorver temáticas que nem na química inorgânica se detêm.

 

Sem surpresa o terreno do “debate” mais clivado é o da direita e esquerda. Qualquer que seja o assunto desde a identidade de Euler até à biomimética tudo é analisável de forma antagónica numa perspectiva ideológica. O que nem é nada de extraordinário. Em ciência sempre foi assim. Aliás, sempre foi assim que se avançou. O que é novo é a introdução massiva da teoria de atribuição causal da psicologia social de modo exuberante e mesmo efusivo. Tudo o que os “meus” digam é imediatamente consolidado com aderência instantânea da claque. Tudo o que os “outros” afirmem e imediatamente barrado com fogo de artilharia pesada. Não parece existir terreno neutro ou de negociação possível. Pior, qualquer sugestão ou apelo à tolerância ou diálogo é tratada por uns e outros como impensável e por certo o proponente de tal aleivosia é um bufarinheiro da pior espécie sem margem para duvida um inelutável e irremediável colaboracionista ou pior ainda.

 

Vivemos tempos interessantes. Absolutos. Sem tempo, sem passado, sem futuro. Tudo parece ser aqui e agora. Estranhamente ou talvez não, o tal livro, o que serve para educar é frequentemente de “história”. Aparentemente no passado existiu ou aconteceu qualquer coisa que demonstra abundantemente que “eu” tenho total e esmagadora razão. E se “tu” tivesses lido tal obra nem estarias “aqui” a fazer-me perder tempo com a tua ignorância.

 

Costumava dizer aos meus alunos que todos os dias que se acordam deviam ver no espelho a pessoa mais bonita e mais inteligente do planeta. Irrealista sem duvida mas necessário para manter o ego sem colesterol ou anemia. Chegámos a um tempo em que quase toda a gente se levanta olha ao espelho e vê a única pessoa inteligente no planeta.

 

Vivemos tempos interessantes. Era uma praga que os chineses costumavam rogar aos adversários.

 

O fim da História e outras lendas

 

Em 1992, um filósofo americano de origem japonesa, Francis Fukuyama, publicou uma obra em que anunciava o fim do debate ideológico centenário com o triunfo da visão hegeliana do liberalismo e da superioridade da civilização que saiu do renascimento, das luzes e da revolução americana.  Hoje sabemos que este decreto foi precipitado, e que a globalização parece ter encontrado um lugar mais confortável para o lado do sol nascente, para ser simplista e, quem sabe até, optimista.

 

Em Gestão e teorias organizacionais também já assistimos a vários decretos destes.  A denominada M-Form; a empresa divisionalizada e organizada em matriz, enaltecida por Williamson e Chandler, como a maior, e derradeira  inovação organizacional do século XX. Parecia ser, de igual modo, o “fim da história” em termos de formas de estruturar uma empresa em particular se fosse uma multinacional.  Sucedeu-se-lhe o entusiasmo com a “reengenharia de processos”, mãe já distante das formas “agile” e do entusiasmo com a gestão de projectos que actualmente provoca um interessante ímpeto de certificações, que, aparentemente, garantem uma quase imediata adaptação a qualquer contrariedade que apareça no meio envolvente do negócio. A flexibilidade total. Uma espécie de kung fu organizacional. Em contraponto com a visão conservadora da qualidade total, que se deduz de uma posição baseada em recursos e capacidades e nas virtudes do interior da organização somada a uma identidade e cultura à prova de fogo e de catástrofes no exterior.

 

Há anos testemunhei em primeira mão outra onda de entusiasmo, também final e definitivo. Fruto do contra-ciclo e do fiasco da teoria dos conglomerados, em que as empresas se diversificariam até ao infinito com um negócio em cada país e em cada sector, como se gerir um qualquer negócio de sapatos em Florença fosse igual a um negócio de hotelaria na Namíbia, e, em pleno ambiente de “small is beautifull” do Schumaker e do “stick to the knitting” do guru Tom Peters, veio o Outsourcing. Tudo o que não fosse “core” era para ser corrido para fora das organizações e subcontratado. Apresentava-se um racional imbatível. Vinha da lógica financeira; transformar em custos variáveis os custos fixos. Na Suécia, assisti ao desmembramento do departamento de manutenção de uma grande fábrica e às pessoas desse departamento a serem convidadas a criar o seu próprio negócio e passarem a prestadores de serviços. E assim foi. Anos depois, com surpresa, de novo nessa fábrica vi que estavam lá de outra vez os engenheiros, mais o departamento de manutenção. Descobriram entrementes que além de custos fixos que pareciam não fazer nada depois de excelentes planos de manutenção preventiva, que levavam mesmo a sério, durante o “resto” do tempo, afinal, os “desocupados” engenheiros da manutenção eram a fonte de incontáveis e muito valiosas inovações de processos industriais e mesmo de redesenho e adaptações em maquinaria, que, aparentemente eram mesmo muito valiosas e não eram registadas na contabilidade. Nem geral nem analítica nem de actividade nem de espécie alguma...   

 

Não obstante a voracidade destas modas, de inúmeras outras que não podemos dar conta, e, nalguns casos a sua curta existência, permanecem lições úteis de todas elas. Quiçá nenhuma foi o “fim da história” mas todas deram contributos importantes para que a história das empresas fosse de maiores sucessos.

 

Na actualidade vivemos, de novo, sob auspício de mais alguns e impressionantes chavões e “buzzwords”. E, de novo, políticos, académicos e alguns gestores parecem estar em clima de fim da história. “Transformação digital”,  “marketing nas redes sociais”,  “gestão baseada em ciência aplicada a lagos de dados”, “inovação em modelos de negócio”, “brands not products”, “criatividade 5.0”...

 

Todas estas prioridades parecem imperativas. De todas há aspectos interessantes, por certo mesmo essenciais. Mas de todas, para evitar mais um ciclo de mergulhos precipitados como com a “reengenharia de processos” inventada para dinâmicas de front office – back office na actividade seguradora, e paradoxalmente aplicada em fábricas de mármores ou fábricas de conservas de atum, talvez convenha ter em atenção lições e princípios que já sobreviveram a tanto fim do mundo em negócios.

 

O entusiasmo, o sentido de urgência com a presença online, as vendas online, a optimização dos sites, a adaptabilidade e utilidade dos procedimentos de encomenda, a facilidade de consulta de “catálogos” parece importante. É importante. Mas convêm não esquecer que quem compra são pessoas médias. Medianas. Modais. E não engenheiros informáticos que concebem algoritmos sofisticados. Aqui há já bastantes anos, a Inteligência Artificial provou ser muito útil. Na famosa experiência do supermercado que associou fraldas para recém nascidos e cervejas. Uma associação totalmente idiota perante qualquer modelo conhecido e desconhecido de marketing ou de segmentação na altura. De facto nunca ninguém se tinha apercebido da existência de miúdos, recentemente tornados pais, que era “enviados” aos supermercados para comprar as necessidades básicas entre as quais fraldas. Ainda semanas atrás ocupavam o seu tempo com a “crew”, os “homies”, jogando e bebendo e “hanging around da hood”. De repente transformados em “prisioneiros” ainda em adaptação. Bom, já que não podiam ir ter com os homies, podiam convidar os homies para casa e jogar e beber umas cervejas  e ver a equipa da cidade a jogar, enquanto brincavam ou adormeciam o filho recém nascido. Aparentemente um “segmento” em crescimento e valioso. Uma instrução misto de algoritmo genético, rede neuronal e inteligência de enxame detectou aquilo que muitos continuaram a rejeitar porque não parecia ser sequer lógico. À luz dos modelos dominantes.

 

Sem duvida que as “redes sociais” são uma fonte de dano reputacional ou de escalada de vendas, a que se deve dar atenção e agir sem hesitação em qualquer dos casos. Sem dúvida que o digital é um domínio e uma fronteira incontornável. Sem dúvida que as formas e fontes de crowdfunding são, na actualidade uma forma inteligente e inovadora de evitar custos financeiros e de angariação de capital, para grande irritação dos sistemas clássicos, por exemplo da banca e dos mercados de capitais. Sem dúvida que potencialmente as moedas digitais podem emergir como forma de pagamentos e transações.

 

Não obstante a necessária ponderação destas questões, e de alguma prudência na separação do trigo do joio, há questões que são Business Fundamentals. Tal como regras de ouro em finanças que ciclicamente parecem ser remetidas para o “caixote do lixo da história” e que regressam com grande estrondo e em geral com crises financeiras como o crash das Dot.Com, a crise do subprime e já para não falar no mecanismo de recuo das bazzoocas que muita gente assevera não existir...

 

Tal como o facto de a natureza humana ser essencialmente a mesma desde há milhares de anos.

 

 

 

terça-feira, junho 30, 2020

Provavelmente

Existem os que acham que é cada um por si e que se fodam os outros ...

Existem os que acham que é cada um por si e que depois devemos ser individualmente generosos com os que dificilmente podem fazer algo por si próprios...

Existem os que acham que todos devem ter o mesmo e que deve haver uma comissão a decidir quem são os outros outra comissão a decidir o que devem ter todos e outra a decidir como fazer chegar o mesmo a todos e ainda outra comissão a ver se alguém tem mais do que o definido e outra para punir os que tem mais do que o definido ...



Existem os que querem ensinar todos a pescar e a garantir que todos tem lugar no barco de pesca e anzóis e canas e minhocas e depois cada um pesque o que puder e coma do que pesca ... e que do que pesca uma pequena parte vá para que aqueles permanentemente incapazes de pescar possam também comer o peixe e para os que momentaneamente ficaram incapacitados de pescar possam voltar à faina ...

suponho que sou dos ultimos que cada um aprenda a pescar e possa pescar como todos os outros e depois que cada um vá à sua vida e faça dela o que lhe aprover ...

terça-feira, dezembro 17, 2019

Possivelmente

E, aparentemente o desejo de um mundo avançado e cosmopolita e sofisticado e igual e com felicidade a rodos para todos chocou de frente com a realidade. Nos destroços do embate descobrimos afinal um sem fim de "identidades" vítimas da ... natureza humana. E descobrimos que o tribalismo e apelo dos iguais, o sentimento de protecção (real e imaginária) da horda, o medo do Outro, a inveja (até como motor da Economia...), o orgulho no grupo de pertença, a agressão como mecanismo de defesa e de coesão,  o ódio como regulador tão forte quanto o inatingível amor pelo próximo são, afinal, traços mais perenes que assomam mal o horizonte aparece não tão promissor como nas fantasias positivas, e as expectativas se diluem em rancor e azedume. Isto é, o eterno retorno ao ódio sempre que a expectativa deixa de ser positiva e é mais fácil desconfiar e desmerecer  o estranho entre nós porque o pão escasseia para todos e o circo tem a tenda a arder. Sem pão e circo decente as diversas tribos refugiam-se naquilo que deu certo desde sempre e maledizem um mundo diluído em que todos se misturam com todos e todos tem o mesmo valor. A perda de esperança (em particular daqueles que se acostumaram a possui-la) conduz como sempre a corredores sombrios.

De um lado, as "vítimas" vitimizam-se ainda mais e organizam a sua raiva. Do outro, o egoísmo cerra fileiras com e no grupo de pertença e organiza o ódio sempre latente. Entrementes a tecnologia difunde de modo absurdamente rápido e enviesado todos os preconceitos e maledicências com inusitada eficácia e velocidade, validado de modo autopoiético as profecia auto cumpridas que cada grupo venera. E, difunde de modo eficaz, porque quer o preconceito quer o delírio aparecem e mostram-se arrogantemente mascarados de virtudes e de superioridade intelectual. E, aparentemente conduz-nos este confronto a uma situação de impasse e de desiquilíbrio que carece de resolução (como de resto é usual).

Estou em crer que esta situação, presente, se deve a um movimento de concentração de riqueza a ritmos e escalas eventualmente "inovadoras", que comprime ou faz desaparecer as classe médias (veja-se a "proletarização" de médicos e professores apenas como mero exemplo) e esmaga o mundo num contexto de pobreza remediada, mitigada por mecanismos de controlo social (como o euromilhões e a bi semanal ilusão de que é possível escapar, e a volúpia do consumo a preços baixos de uma economia a caminho da uberização total) mas que a prazo soçobrarão.

Estou em crer que a coisa piorará. Que a massa se tornará cada vez mais pobre e por consequência mais susceptível de aderir a quaisquer ódios que forneçam esperança ou ilusão de esperança senão de solução pelo menos de satisfação sádica porque os "outros" ficarão pior que "nós".

A lógica de funcionamento da sociedade, por acção do poder (legítimo ou ilegítimo), premeia, cada vez mais, os que estão no topo da riqueza (embora uns caiam e outros assumam a preponderância, renovando-se mais do que parecem estas elites com poder económico) criando vínculos de submissão da classe política, que legisla e actua para a protecção de uma riqueza com origem no casino financeiro predador, ou na decisão administrativa que concede o uso de recursos cuja titularidade resulta de regras "porque sim" como o uso do solo e do subsolo, da água e do vento e do sol, ou por vezes, e não tão raras como isso, com base no mérito e na inovação sem, portanto, nenhum pecado da acumulação primitiva marxista (embora estes sejam sempre olhados com desconfiança pelos velhos ricos e pelos seus herdeiros e pelos políticos que à esquerda e à direita os invejam) mas esta lógica conduzir-nos-á a uma situação que vai carecer de resolução. A distância entre estes seres cuja fortuna é incomensurável à escala do quotidiano vulgar, e os que se levantam para ir para o escritório no centro (repare-se que já nem menciono os que se levantam de madrugada para ir lavar os escritórios dos segundos...) começa a ser tão grande que a coisa um dia terá de quebrar.

À medida que a desigualdade se potenciar em escala que parece exponencial, os que ficam em baixo (quase todos) começarão, finalmente, a olhar para cima e para os políticos serventuários da situação. Depois deste período em que, os debaixo, se odeiam entre si e se acusam das maiores vilanias e comportamentos soezes (potenciados pelas fake nesws espalhadas pelas redes sociais), como está a acontecer agora, um dia a exploração das identidades e dos seus conflitos (entre pretos e brancos, entre transexuais e Terfs, entre Benfica e Porto, vegans e comedores de carne, entre historiadores e sociólogos, entre marketing e finanças, etc...) será insuportavelmente imbecil e estúpida e as pessoas finalmente, frustradas pela inutilidade destes pequenos ódios, virar-se-ão para cima e para a riqueza acumulada sem explicação razoável (e o razoável é uma relatividade). Esta viragem não acontecerá, possivelmente, antes de alguns destes ódios terem provocado tragédias absolutamente desnecessárias e sem ganho nenhum relevante. Suponho, numa área que me toca, que a ciência sofrerá imenso nos próximos tempos, em que em vez de modernismo Leibnistziano, caminhemos para um, e ao som de um, activismo centrado em falácias ad hominem e das mais fáceis. (Provavelmente os OK Boomers brancos hetero mesmo que de esquerda serão shut down e com eles os departamentos de STEM entregues a epistemologias pós esclavagistas e/ou ontologias feministas. De seguida os departamentos de estudos feministas serão expurgados das lésbicas que continuem a teimar que uma mulher tem ovários. E por aí ...)

Mas depois destes devaneios, a esquerda terá de encontrar um caminho de volta a Newcastle. Se não encontrar, ficará perdida no cosmopolitismo artificial de Londres e desaparecerá engolida na impotência e no caos gerado pelas lutas fraticidas de grupos e subgrupos folclóricos que se querem apoderar da linguagem acreditando que aquele que controlar as palavras controla a realidade.  (A realidade de facto é definida (não controlada) por palavras, sempre o foi, a questão é que ninguém controlará as palavras, as conversas serão sempre como as cerejas). A realidade rir-se-á. Esta esquerda insuportavelmente totalitária e/ou delirante não será  tolerada. Será dizimada e substituída, potencialmente,  por uma direita abertamente xenófoba, racista e misógena que fornecerá "tranquilidade", "ordem pública", e protecção musculada a quem possa pagar o preço.

O problema irresolúvel da esquerda, parece ser a incapacidade de compreender o valor evolucionista da natureza humana (sim é tóxica). E de esperar por Godot na esquina da construção do "homem novo" e "perfeito" que nunca virá.  Porque esse "homem novo" parece um conas de sabão sem drive, sem paixão, sem inquietação, sem angústia sem pulsão. Um palhaço que viveria em contemplação e sempre satisfeito com o seu quinhão que lhe toca no mundo comunista e sem problemas para equacionar e se esbardalhar e estrafegar neles. Um panhonhas incapaz de invejar, de se roer para ser melhor, sem desafios, sem tensão e sem tesão pela vida.

O problema da direita alternativa à direita totalitária e serôdia é semelhante. Em vez do "homem novo" acredita que o "homem velho" criará o "Mercado perfeito" . Um mundo em que o mercado premiará (sempre e somente) o esforço honesto e diligente. O mercado escolherá sempre a melhor solução. A maior eficiência. Desde que se removam os políticos corruptos e os malfazejos regulamentos que cerceiam e castigam a alma e a inciativa humanas. Os seres imperfeitos criarão de modo auto organizado uma sociedade perfeita. E satisfeita esta premissa a compaixão tomará conta dos corações dos homens (todos de boa vontade) e os que forem menos favorecidos pela genética ou pela circunstância aleatória da vida encontrarão na caridade dos demais a mitigação (eventualmente digna) do seu infortúnio.

Lamento mas nem uns nem outros são realistas. O homem novo e o mercado perfeito são utopias. Meras utopias. Uma conduz a um mundo monótono, sem paixão nem pulsão  e insuportavelmente repetitivo. Outra conduz a um mundo igualmente mecânico e de mera optimização de funções de investigação operacional em que só se tem valor porque se resolvem algoritmos. A natureza humana que nos trouxe até aqui é incompaginável com estas tretas. A inveja e mesquinhez tem um valor insofismável para a evolução da espécie. E essa realidade não permite nem a  criação de pureza contemplativa e auto-satisfeita nem permitirá a eficiência máxima total do fair trade. O ser manhoso procurará sempre o short cut o easy way out (é essa uma das origens da criatividade quer se queira quer não).  Lamento mas quem quiser triunfar (no contexto presente e de médio prazo) fornecerá aos esmagados da classe média uma fatia grande da riqueza acumulada. (Esquerda ou direita terão de ir ao pote ...). Inexoravelmente a riqueza acumulada em dimensões obscenas e incompreensíveis será redistribuída (há um momento em que odiar e invejar o outro que é fundamentalmente pobre como nós se torna inútil e sem valor instrumental).  A mal por certo. E, depois, será necessário encontrar um equilíbrio entre a liberdade de criar mais, de ganhar mais, sem que ninguém meta o bedelho, e a necessidade de amparar aqueles que efectivamente necessitam de amparo ainda que circunstancial e efémero. Um equilíbrio entre o Estado social (de solidariedade forçada) e o capitalismo utópico do mercado perfeito (que requer indivíduos que se sentem responsáveis por si próprios). Um equilíbrio instável mas imperativo. Que não premeie a corruptela da negociata manhosa nem premeie o "esquema" de aldrabice do subsídio proxeneta do esforço dos demais.

E, para já lamento pelos meus amigos de esquerda que honestamente acreditam que são melhores pessoas, que possuem uma superioridade moral e estão ungidos, mas quem me parece mais capaz de executar e oferecer este equilíbrio aparenta ser uma direita tolerante sem complexos e sem vínculos à religião, à tribo, e à corporação.

Aguardemos pelos próximos capítulos. 

segunda-feira, novembro 04, 2019

Para que serve a ciência então?

A propósito de uma tese de doutoramento de um político que alegadamente explora o azimute contrário ao sentido da orientação actual do dito político ( do que defende e da forma como defende) vi expendidos os argumentos mais extraordinários.

Em primeira instância, e arrumando já um aspecto não interessante mas que gera ruído, vi a desqualificação da fonte do alegado ataque à coerência do político. A Câncio. Pessoa que não me é nada simpática e a quem a pedrada "ao outro não viste mal na licenciatura por fax ao domingo" acerta sempre. A falácia ad hominem é claríssima e tosca. É-me indiferente a razão, a imputação e atribuição de intenção à mensageira. Pode ter sido tudo o que quiserem, o trabalho que ela fez vale. E muito. E o dispêndio de energia neste tipo de interacção, infelizmente tão típica dos dias que correm releva e revela apenas a mediocridade de quem cai na falácia. Lamento mas quem chafurda nesta lama não é melhor que a gaja a quem acusam de ir para Formentera e não desconfiar da luxúria, opulência ou apanhada nas escutas a aconselhar não pedir factura para esconder a coisa. Temos de ser melhores que isto.

Indo ao essencial. Vi inúmeras justificações para a separação da tese e da vida. Uma coisa, li espantado, é a ciência, e o rigor científico, e a adequação aos canones da academia, outra coisa é a vida real. E, nessa sequência, nada obriga um dever de coerência entre o que se "investigou", a "prova empírica" recolhida e a necessária conclusão teórica ou doutrinária e a posterior utilização desse conhecimento ou mesmo o seu repúdio na vida corrente, dita "real".

Em primeira instância esta desvinculação conduz-nos a uma armadilha impensável. A ciência como mero acto ritual. Nas palavras dos que defendem a superioridade da legitimidade e mesmo da inimputabilidade do cientista, a ciência como acto de produção de artefacto cultural. Julgado o valor desse artefacto pelos "pares" e sem que a sociedade (ou os contribuintes) que pagam todo o circo tenha que meter o bedelho no assunto desde logo porque "não são da área". Lamento. Esta extraordinária enormidade conduz-nos a uma situação em que a ciência é aquilo que o cientista quer que seja e diz que é. Validado pelos seus colegas e amigos cm que troca de forma obscena citações mútuas num perpetuo e descarado sistema de you scratch my back i'll scratch yourse. Um sistema autopoiético portanto.  Leva-me esta negação da modernidade, muito fundada na asserção de Latour "we have never been modern" (que está longe de querer dizer o que lhe atribuem) à abertura de portas de toda a sorte de merda pós modernista que nem sequer travesti de ciência é. Que culmina com meros artefacto retóricos sem critério de validação plausível e nem sequer se trata do problema que Godel nos descreveu na sua indecidibilidade. Trata-se mesmo de merda que não é, não foi nem será nunca ciência. Mesmo que para elas existam comissões de avaliação da A3ES. Não, a ciência não tem de ter apenas um carácter utilitarista como gostam de acusar os que defendem que "as universidades não podem ser os laboratórios nas traseiras das empresas" avançado o argumento do "economicismo", mas a ciência tem responsabilidades cada vez maiores em tempos de obscurantismo, que curiosamente provem, em grande modo, das próprias salas de aula das universidades...  Mormente de ser Ciência. Replicável. Escrutinável. Avaliável. Sujeita a dissensão e discussão. Mesmo que em ultima análise cheguemos ao paradoxo de Freeman Dyson e só a Física preencha todos os critérios que ele estabeleceu.

Não faço a mínima ideia se a tese do Ventura é desta estirpe, primeiro porque é na área do Direito que pode ser tudo mas nunca será ciência. Não vou perder tempo com uma coisa que não é validável nem pelo verificacionismo (da modernidade) que nos conduziu a vários becos sem saída, e que em geral à segunda página também não resiste a nenhuma heuristica negativa de Popper (que estatuiu o que deveria ser o pináculo da pós modernidade). Isto é colapsa a um mero exemplo de excepção que qualquer canalizador é capaz de lucubrar.  Mas a  desonestidade intelectual é uma porra. Mesmo no Direito ou nos estudos etnográficos de folclore. Se, hoje, o Ventura não concorda com o objecto ontológico que investigou, com o método epistemológico, ou com as conclusões, ou se acha que o domínio a que aplicou o estudo original da sua tese não é isomórfico do domínio em que hoje opera, ou o domínio onde são expendidas as críticas que lhe foram dirigidas deve clarificar isso com argumentos sérios e atendiveis. O que não pode é dizer que não tem nada a ver o cu com as calças. Não sei se o fez porque não li a entrevista e desconheço o que disse na íntegra. Mas os excertos que li das citações da tese e da entrevista são avassaladores.

O que não posso admitir é que se possa dizer, na alegada defesa da sua incoerência, que quem faz investigação numa área diga que pode discordar dela depois na vida real. A vida real é a ciência a sério. É nela que deveríamos depositar a esperança para que dela saíssem soluções firmes e exequíveis para os problemas que enfrentamos a cada momento. O valor da ciência reside precisamente na possibilidade de explicação do mundo e na perseguição incansável da verdade. Ainda que a cada momento essa explicação possa ser ilusória. E substituída a explicação por cruel oposição de orientações ontológicas adversariais e melhorias epistémicas. Novos dados, novas teorias podem causar o abandono de velhas explicações. O que não podem justificar é lavar as mãos. A justificação para investigar e abocanhar recursos que possuem usos alternativos tem de ser fundamentada em actos de honestidade intelectual e no potencial de benefício, ainda que distante e mesmo pouco visível, para a sociedade e para a nossa vida (eco)comunitária.

Se por absurdo alguém começar a investigar a ligação causal entre uma molécula e um efeito negativo para a vida humana, gastando dinheiro dos seres humildes que andam a pagar impostos e a amochar pelas seis da matina no barco do Barreiro, conclui que há um efeito e recomenda medidas na sua tese por exemplo de saúde pública, depois muda de emprego e vai para um sitio onde o "paradigma" é diverso e passa a dizer que as recomendações que fez na tese não tem nada a ver com a vida real, esta pessoa tem um nome simples, é uma puta (independente do género).

Dito isto tudo sobre o valor social da ciência (exige-se apenas aos STEM o resto é ... literatura moderna) acredito piamente que isto não passe de uma minudência. Quer o Ventura quer os seus inimigos continuarão infelizmente a explorar a teoria de atribuição causal da Psicologia Social com evidente sucesso. O futuro parece-me negro no horizonte e vislumbro poucos raios de luz.

quinta-feira, setembro 26, 2019

Muito cansaço

Como é que poderemos exigir aos nosso filhos, aos nosso alunos, aos nosso concidadãos que sejam boas pessoas? Que cuidem do ambiente. Que se comportem de modo íntegro e digno. Que paguem os impostos devidos ainda que estejamos a caminho de uma situação de esmagamento fiscal. Que sejam solidários com os menos bafejados pelas circunstâncias. Que sejam tolerantes para com os shortcomings que todos exibimos. Que sejam tolerantes para com os diferentes e intolerantes para com quem apouca e exclui os que são diferentes.

Confesso que estou cansado. A balcanização de todo o espaço público no matter what the subject and the issue are é claustrofóbica. É insuportável.  E o acantonamento de aprovação do despudor aberto, exuberante, quase obsceno do que se vai passando, quando a autoria da façanha é "dos nossos" é demasiada.

Imaginem que o país era um desses recantos do norte da Europa onde alegadamente a ética (nem sequer republicana...) é levada, ainda, bastante a sério. Imaginem que um ministro tinha enviado a um deputado do seu partido uma mensagem em que confessava que sabia de uma coisa inacreditável, criminosa, impensável quase surreal. Mas que, e avisava na mensagem, se dispunha a mentir ao parlamento. A ocultar o que sabia. A utilizar a usual langue de bois para mistificar as coisas, os factos, as datas, as circunstâncias. O habitual portanto (mas entre nós).

Por certo acreditam que nesses países mágicos do norte estas duas criaturas sofreriam os danos adequados ao seu comportamento. E no caso do ministro a cadeia seria inexoravelmente o destino. No caso do deputado no mínimo seria retirado do convívio social e do plano político.

Pois como é expectável, por aqui no burgo, o ex ministro possivelmente sairá incólume. Depois de um pequeno período de nojo será nomeado para outro cargo mais compensador do ponto de vista monetário. O deputado poderá continuar a exibir os predicados de virgem ofendida. Ambos serão louvados internamente pela sageza da sua Omerta. E, em geral, com a disseminação pública da mistificação pelos serviçais e putas ao serviço.

Começamos por fechar os olhos às cábulas manuseadas de modo canhestro. Viramos a cara ao desfalque na receita da venda de cervejas e sandes de couratos na festa da aldeia ou da faculdade. Encolhemos os ombros à escolha da prima em detrimento da candidata sem cunha que tem mais óbvias capacidades. Achamos "natural" a promoção do graxista lambe cús. O favorecimento de familiar do colega de governo, desde que disfarçado entre outras duas propostas combinadas num tranquilo repasto nem sequer escandaliza o conselho superior da magistratura que tratou de caucionar estas salutares práticas.

Acabamos no pântano do outro manhoso que fugiu. Num manicómio a céu aberto.
Numa estrumeira em que o pilar essencial da esperança na remissão da porcaria, a Justiça, não estranhamente escolhe a antevéspera de um acto eleitoral para despachar uma acusação, abrindo, necessariamente, lugar à suspeita e, yet again and again, de agenda escondida, de frete, de tudo menos aquilo que necessitamos de uma Justiça que não sejam parceira voluntária da chafurdice.

E o desencanto sobrevêm. Uma angústia plácida e já quase serena de quem sabe que só sobeja histeria, crendice e imbecilidade.






Um grande bem haja para todos os que diariamente despejam mais merda na estrumeira. 








segunda-feira, setembro 09, 2019

The Age of Aquarius


Há poucas décadas proliferava pelo mundo um optimismo assente na esperança que a ciência, a tecnologia e novos estados de “consciência colectiva” nos transportariam para uma espécie de paraíso na Terra. O fim, talvez exagerado, da ideologia colectivista e determinista do comunismo soviético, abria fronteiras de liberdade individual e de transformação social com a resolução de velhas opressões: de raça; de género; de orientação sexual; de classe; de acesso à educação entre outras.

O consenso social democrata, e o seu primo, o marxismo de paladar mais europeu e selecto,  repousavam nas universidades, em particular nos departamentos de linguística onde eram desenvolvidas utopias de mais “homem novo”, agora um ser de sexualidade fluída livre de preconceitos, do passado e das amarras materiais. O welfare state  morrera, mas felizmente o dinheiro barato e o crédito universal colocavam o consenso de Washington e o mercado (ou seja o capitalismo) ao serviço de todos. E, todos ficariam contentes. Liberdade  económica e liberdade de costumes. Uma sociedade livre de seres livres e iguais e, próspera, com seres ricos como Gates que achavam que os impostos deveriam ser mais altos e financiar uma visão mais igualitária. 

Mas algo correu mal. As elites iluminadas e frequentadoras de Davos e de outros lugares prenhes de panache, categoria e charme, alimentaram e alimentaram-se de uma ilusão que deixou na penumbra os “deplorables”.  E os deplorables vêm em várias tribos, alguns até de colete amarelo. E do arrumo que era uma sociedade com classes, mas poucas e sem complexidade assinalável, ao fim ao cabo eles e nós são categorias simples, damos por nós submersos numa cacofonia de vozes agressivas e polarizadas. Infelizmente o mundo é hoje uma imensa balcanização de tribos de consumidores e de estilos de vida que não parecem acomodar-se aos padrões desejados pelos próceres da engenharia social dos departamentos de estudos de género nem  das business schools.

O controlo social, que no fundo todos desejavam, perdeu-se num mar de tecnologia que proporcionou voz e espaço social a toda a sorte de pessoas. Ampliando até ao delírio as fantasias e os preconceitos de todos. E, em vez de liberdade de costumes temos hoje um espaço social cada vez mais hostil, agressivo, anti-científico em que tudo se dilui e relativiza. Pior, a riqueza gerada foi também presa fácil de gente mais criativa nos processos de corruptela e de invenção de esquemas de ponzi, a que a banca se acabou por dedicar de modo bastante claro. E aqui estamos,  com a noção de que a evolução do paradoxo formulado pelo biólogo Edward Wilson; temos emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologia dos deuses, não parece ser a mais promissora. 

As elites, sem surpresa,  de ambas as aisles do political spectrum, reagem com sugestões de supressão de liberdade que já conhecemos no e do passado. As divisões sociais escancaradas e muito visíveis remetem-nos igualmente para tempos sombrios do passado.   Dark times ahead.

quinta-feira, abril 11, 2019

A culpa de ter partido, a raiva de ter ficado e a saudade de não voltar

Há quem diga que Portugal sofre de uma doença bipolar. Seriamos, portanto, possuidores de uma natureza maníaco-depressiva, oscilando, sem realismo, entre a fuga megalómana para o prognóstico de realização imperial e, o soçobrar, o colapso colectivo, que se afunda no diagnóstico auto-punitivo de tragédias anunciadas a que se segue um desejo de regeneração que nunca é concretizada. Ora o problema parece-me ser outro.

Parecemos mais um povo infantilizado. Eterno adolescente imberbe, cheio de angústias e de crises de auto confiança. Inseguro e incapaz de largar de vista a mão do pai idealizado contra o qual, paradoxalmente, se quer afirmar. Típico dos adolescentes, vivemos em eterna auto perscrutação, numa zona nebulosa e ambígua, ansiosos e hesitantes sobre os desígnios a perseguir e incertos quanto às acções a executar.

Oscilamos, de facto, entre a amargura do falhanço antecipado e a euforia irrealista e inebriante de um futuro radioso e grandioso. Em qualquer dos casos, em termos absolutos e definitivos, para além de qualquer ponto de equilíbrio redentor. Por vezes, apresentam-nos cheios de manhas e de mecanismos de defesa, somos ardilosos de modo um pouco cobarde, e sentimo-nos inferiores. Outras vezes, cheios de sonhos de importância perene e esmagadora, somos arrogantes e megalómanos e sentimo-nos superiores. No fundo, como qualquer adolescente à procura do seu lugar no mundo e do seu papel.

Um povo adolescente eternamente à procura do pai ideal que alumie o caminho a percorrer e sempre a rejeitar qualquer pai que se afigure possível. Um povo prisioneiro, há séculos, deste paradoxo. Sempre em busca de um líder/pai carismático idealizado que nos exima de nos maçarmos com a angústia do trabalho e do pensamento e a quem possamos transformar em bode expiatório para a nossa própria inépcia e preguiça. Um povo que teme a incerteza tanto, que “compra” qualquer certeza ilusória. E que se acostumou a estar naquela zona cinzenta em que se pode atribuir às circunstâncias e a terceiros a “culpa”, por coisas que, de outro modo, poderiam ser corrigidas como parte de processos de aprendizagem e crescimento. Um povo que por vezes cede à impotência, disfarçada pelo marialvismo e pelo misticismo barato. Não raras vezes, consumimo-nos na cobardia de não denunciar pela frente aquilo de que nos entretemos a fazer a dissecação em voz baixa, sempre lestos a condenar, antes de prova irrefutável, elaborando longuíssimos e amplos juízos de intenção e de valor. Um povo demasiado habituado a não tomar decisões e a assumir a responsabilidade pela escolha produzida. Um povo ignorante que se presume sabichão. E choramingas. Sempre coitadinhos.

Seremos antes um povo de indivíduos fracos, incapazes de relacionamento de iguais, ansiando pela validação e afago do chefe? Mas somos mais um povo sem individualismo, porque, aparentemente, a nossa individualidade é apenas uma mera expressão da diferença percebida ou desejada em relação ao outro, e não base de autoconfiança e crescimento próprio. Antes pelo contrário, dependentes do reconhecimento do e pelo outro, que contudo nunca é suficiente, porque é sempre relativo, pedinchamos constantemente atenção e carinho que depois não aceitamos porque somos incapazes de assumir uma relação igual em que tenhamos de nos dar também. Preferimos pois, a adulação distante em lugar da emoção genuína. Basta ver como por circunstâncias e ocasiões várias, sempre que há eventos, cá dentro ou lá fora, mandamos repórteres perguntar aos estrangeiros de modo retórico: “- Então o que diz de Portugal? Somos um povo simpático e que se desenvolveu imenso, não acha?” “Não acha que podemos ser campeões do mundo?”
E o pobre turista apanhado desprevenido lá balbucia, com um sorriso de perplexidade, um “pois”...

Incapazes de enfrentar o confronto com o outro. De dizer frontalmente aos milhares de “protagonistas” da ausência de ideias e de estratégias, que é tempo de arranjarem roupas porque, para além de nus, vão monótonos e saloios...

Mas enfim, sempre temos um solzinho que faz inveja aos nórdicos e um tinto de Pias que é um espectáculo... no fundo no fundo para quê mudar se virá sempre alguém resolver os nossos problemas por nós... hã?

José Manuel Fonseca