Aqui, 23 de Agosto 2087. Na minha rua foi descoberta uma pessoa que lia livros e possuía mesmo um dicionário. Denunciado por um comité de cidadãos preocupados, de que faziam parte a D. Célia e o Sr. Marco, o meliante foi encaminhado para o Tribunal Supremo da Grande Inquisição dos Comportamentos Socialmente Aceitáveis. Os Meretissímos Juízes E. Rangel, J. Moniz e En de Mol e outros membros do colectivo, de que se tornaria fastidioso dar conta, conduziram um rigoroso inquérito. Concedendo em média dois segundos para cada resposta, colocaram perguntas de grande relevância jurisprudencial e objectividade, como por exemplo “já deixou de ser um perigoso facínora e um ser desprezível? Sim ou não?”
Aguardando com paciência o que o arguido tinha para dizer, o inquérito prolongou-se por mais de quinze minutos, excedendo a norma de eficiência interrogatória MJ67/2077, enquanto o arguido murmurava coisas incompreensíveis sobre um denominado princípio do terceiro excluído. Instado a comentar, por uma, competente e culta, jovem jornalista do canal 34 da Grande Televisão Unificada, o PM balbuciou a frase “é necessário aguardar com serenidade”, tendo a jovem jornalista concluido com autoridade, “portantos, concorda com a pena perpétua aplicada, portantos….”
Aqui, 8 de Maio de 2056. Devido a um feliz acaso, um cidadão da minha rua descobriu num velho baú, um documento que vem por fim a especulações sobre a viagem de Vasco da Gama. Prova-se, finalmente, que a 4 de Junho de 1447, Vasco da Gama recebeu o “go ahead” para a expedição por parte da 12ª comissão de avaliação de projectos de risco. A comissão, presidida pelo Conde Economicus Rationalis, ficava satisfeita quanto ao cálculo do valor actualizado do cash flow a gerar pelo empreendimento, quanto à bondade do cronograma do projecto, e, sobretudo, quanto ao formato dos relatórios a enviar trimestralmente ao “review board”. Foram nessa altura dissipadas as dúvidas quanto à nau “Bérrio” que tinha sido indevidamente inscrita e referenciada como caravela no formulário entregue na 3ª Comissão de Avaliação Global de Hierarquização Múltipla de Projectos. Recorde-se que este erro, tinha levantado dificuldades à configuração do sistema de avaliação de desempenho global bem como ao sistema de monitorização parcelar, com vista à certificação do “final report”. O Capitão Gama, tinha proposto que a descoberta da Índia ocorreria pelas 18 horas e 35 minutos (tempo local) do dia 22 de Maio de 1498, facto que levantou alguma celeuma dadas as calendarizações de outros projectos. Por sugestão do Barão Precisus Cartesianus, o cronograma foi revisto tendo sido acordada a data de 20 de Maio pelas 3 horas com uma tolerância de 26 minutos de acordo com a norma de qualidade de investigação fundamental em projectos oceanográficos ISO 0897/65 e com a norma de assertividade na navegação 342/87.
Face a esta magnifica descoberta, o ministro da educação qualificante pós doutoral, apanhado de surpresa no intervalo das gravações do popular concurso “A Minha Vida é ver Televisão”, em que como sabem, todas as terças feiras é sorteado um concorrente da casa, a quem é implantado um receptor neural de televisão e removida a zona que controla o sono, por forma que o felizardo consiga ver seis mil canais em simultâneo sem necessidade de perder tempo a dormir, declarou, “trata-se de mais um sucesso da política de rigor e modernidade que vimos trilhando”.
Aqui, 14 de Janeiro de 2071. Um cidadão da minha rua decidiu requisitar uma ama a tempo inteiro, aos serviços de estrutura social do Ministério da Reforma de Grupos de Risco. O jovem cidadão C. Malhadas, de quatro anos, foi o primeiro cidadão da minha rua a exercer o direito que a nova lei de apoio a “orfãos de pais ausentes” confere. No formulário 24/B/25HG, que recorde-se substitui o anterior formulário ER/89/GK, o declarante assinala que os pais se encontravam em casa (definido o espaço casa em termos sociais de acordo com a norma TY453/ISO/32) menos do que a média de 19 minutos, o que viola a norma de tempo parental mínimo de qualidade definido pela norma IPQ/8900. Para além desta violação grosseira, os pais de C. Malhadas, não cumpriam ainda a norma que regula o tempo mínimo de qualidade comunicacional. A comissão que avaliou a fase de apreciação preliminar do pedido do cidadão Malhadas verificou, adicionalmente, que os pais dele não aferiam os cronómetros instalados na residência dos Malhadas nos últimos sete meses. Esta violação, gravíssima, da utilização de artefactos centrais, conduziu o casal a um julgamento sumário no Tribunal de Inquisição Média da Família em Conceito Lato, que sentenciou o casal a dois meses de interdição da frequência de espaços comercias bem como à cessação do direito de requisitar anti-depressivos por igual período, adicionalmente o casal fica proibido de enviar postais para castings em programas televisivos.
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José Manuel Fonseca
3 comentários:
Mas como é que só agora descubro este blog? - E só o descubro por causa do atentíssimo Carlos do Ideias Soltas! José Manuel Fonseca, as minhas muito honestas felicitações! Boa escrita, boa ironia, até um cheirinho ao 'Cântico para Frei Leibowitz' e um desgraçado de um bom gosto de um sarcasmo que valha-me Deus que me roo de inveja, solidariedade e admiração! As minhas calorosas saudações blogosáuricas! :)
Ainda por cima, a artrose, velha de muitos anos, deve-me ter afectado profundamente a visão, porque já em tempos me passeei - gostosamente, apesar dos virus - em gripes anárquicas e lembro-me (ao menos isso!) de ter arrumado numa gavetita qualquer do sótão menção desta porta. Mas a verdade é que só agora, para meu mal, arrastei até aqui a barbatana... Já não se fazem memórias atentas como as de outrora... Desculpe o desabafo, mas foi um 'ai!' que me deu!
Obrigado! Raramente se sente que se escreve para alguém. Habitualmente passamos em monólogos um bocado onanistas o que aflora acima do pescoço. Desta vez parece que pelo menos uma pessoa apreciou a coisa...tá ganho o dia...até loch...
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