segunda-feira, março 10, 2008

À partida

não sou nem adepto nem sequer entusiasta do que é público como moralmente superior ao privado. Tenho, de igual modo, muitas dúvidas sobre a bondade "por definição" do privado como alternativa lógica a todas as esferas do público. Num e noutro caso, sou pouco dado a exaltações de prefixo e de premissa. Acho que o Estado resultou do consenso a que fomos chegando sobre a forma de nos protegermos da incerteza e da arbitrariedade da natureza. Não surpreendentemente os abusos começaram logo tão cedo quanto estabeleciamos acordos sobre os benefícios a tirar do sacrifício colectivo. Não surpeendentemente descobrimos claustrofobias no excesso de protecção a que chegámos. Talvez a solução mais racional não seja o regresso à incerteza pura a enfrentar cada um por si numa espécie de fascínio pelo estado de "pureza" original e selvagem que premeia o esforço individual e castiga os madraços...

A solução não será também, a passagem à obsessão pelo controlo aparentemente absoluto, mas na realidade apenas paranóico. Quer pela via de arrasar tudo o que foi feito quer pelo "remédio" de redobrar os procedimentos de triplo e quádruplo controlo do que é incontrolável. Do mester ético do passado que comportava dignidade e valor socialmente estabelecido passámos à sequência de acções isoladas sem fio condutor sem gradiente humano alegadamente a troco de maior eficiência. O quer que isso seja.

Vem isto a propósito do meu filho mais velho estar encantado com a tarefa de monitor da semana da matemática na escola dele. Não há mecanismo de avaliação que capture a satisfação e o orgulho que ele exibe aqui em casa. Nem a motivação que ele pode arranjar para seguir estudando. Os professores que o ajudaram a treinar para esta semana devem estar também orgulhosos do trabalho que fizeram. Ajudaram na sementeira. Os frutos serão colhidos mais tarde. Muito mais tarde. Tão tarde que já só restará uma memória daqueles que influiram na carreira dele. Não há sistema de avaliação que permita aferir a vida. Eu ainda recordo com grande carinho a Emília Marques, professora primária da escola 52 da Calçada da Tapada, escolhida pelo meu pai em alternativa à escola Avé Maria. No primeiro ano de escola interclassista partiram-me a cabeça umas quatro vezes até que descobri o caminho da Tapada de Agronomia onde podia caçar salamandras e osgas que serviam de "argumentos" negociais para o fim das hostilidades com os "calmeirões". Além dessa experiência inolvidável, a escola 52 deu-me a "Dona Emilia", que organizou várias "semanas da matemática"... que dava aulas de inglês, em 1966... que arranjava maneira dos pais mais abastados pagarem as excursões aos miudos mais pobres, que arranjou maneira de termos uma equipa de hóquei em campo, e tinha o brio, a vocação, o orgulho, o culto dos mestres artesãos da Idade Média e pertencia à guilda secreta dos contadores de estórias.

A Emilia Marques foi avaliada por nós, seus alunos, várias vezes. A maior professora que jamais tivemos. Não sei se ainda irei a tempo de preencher os papéis da avaliação.Sei que reconheço nas estórias que os meus filhos trazem das escolas velhas coisas familiares. Há mais Emilias por aí. A papelada nunca lhes fará justiça.

1 comentário:

dutilleul disse...

Pois não. A papelada nunca lhes fará justiça.
Magnífico post.