terça-feira, dezembro 17, 2019

Possivelmente

E, aparentemente o desejo de um mundo avançado e cosmopolita e sofisticado e igual e com felicidade a rodos para todos chocou de frente com a realidade. Nos destroços do embate descobrimos afinal um sem fim de "identidades" vítimas da ... natureza humana. E descobrimos que o tribalismo e apelo dos iguais, o sentimento de protecção (real e imaginária) da horda, o medo do Outro, a inveja (até como motor da Economia...), o orgulho no grupo de pertença, a agressão como mecanismo de defesa e de coesão,  o ódio como regulador tão forte quanto o inatingível amor pelo próximo são, afinal, traços mais perenes que assomam mal o horizonte aparece não tão promissor como nas fantasias positivas, e as expectativas se diluem em rancor e azedume. Isto é, o eterno retorno ao ódio sempre que a expectativa deixa de ser positiva e é mais fácil desconfiar e desmerecer  o estranho entre nós porque o pão escasseia para todos e o circo tem a tenda a arder. Sem pão e circo decente as diversas tribos refugiam-se naquilo que deu certo desde sempre e maledizem um mundo diluído em que todos se misturam com todos e todos tem o mesmo valor. A perda de esperança (em particular daqueles que se acostumaram a possui-la) conduz como sempre a corredores sombrios.

De um lado, as "vítimas" vitimizam-se ainda mais e organizam a sua raiva. Do outro, o egoísmo cerra fileiras com e no grupo de pertença e organiza o ódio sempre latente. Entrementes a tecnologia difunde de modo absurdamente rápido e enviesado todos os preconceitos e maledicências com inusitada eficácia e velocidade, validado de modo autopoiético as profecia auto cumpridas que cada grupo venera. E, difunde de modo eficaz, porque quer o preconceito quer o delírio aparecem e mostram-se arrogantemente mascarados de virtudes e de superioridade intelectual. E, aparentemente conduz-nos este confronto a uma situação de impasse e de desiquilíbrio que carece de resolução (como de resto é usual).

Estou em crer que esta situação, presente, se deve a um movimento de concentração de riqueza a ritmos e escalas eventualmente "inovadoras", que comprime ou faz desaparecer as classe médias (veja-se a "proletarização" de médicos e professores apenas como mero exemplo) e esmaga o mundo num contexto de pobreza remediada, mitigada por mecanismos de controlo social (como o euromilhões e a bi semanal ilusão de que é possível escapar, e a volúpia do consumo a preços baixos de uma economia a caminho da uberização total) mas que a prazo soçobrarão.

Estou em crer que a coisa piorará. Que a massa se tornará cada vez mais pobre e por consequência mais susceptível de aderir a quaisquer ódios que forneçam esperança ou ilusão de esperança senão de solução pelo menos de satisfação sádica porque os "outros" ficarão pior que "nós".

A lógica de funcionamento da sociedade, por acção do poder (legítimo ou ilegítimo), premeia, cada vez mais, os que estão no topo da riqueza (embora uns caiam e outros assumam a preponderância, renovando-se mais do que parecem estas elites com poder económico) criando vínculos de submissão da classe política, que legisla e actua para a protecção de uma riqueza com origem no casino financeiro predador, ou na decisão administrativa que concede o uso de recursos cuja titularidade resulta de regras "porque sim" como o uso do solo e do subsolo, da água e do vento e do sol, ou por vezes, e não tão raras como isso, com base no mérito e na inovação sem, portanto, nenhum pecado da acumulação primitiva marxista (embora estes sejam sempre olhados com desconfiança pelos velhos ricos e pelos seus herdeiros e pelos políticos que à esquerda e à direita os invejam) mas esta lógica conduzir-nos-á a uma situação que vai carecer de resolução. A distância entre estes seres cuja fortuna é incomensurável à escala do quotidiano vulgar, e os que se levantam para ir para o escritório no centro (repare-se que já nem menciono os que se levantam de madrugada para ir lavar os escritórios dos segundos...) começa a ser tão grande que a coisa um dia terá de quebrar.

À medida que a desigualdade se potenciar em escala que parece exponencial, os que ficam em baixo (quase todos) começarão, finalmente, a olhar para cima e para os políticos serventuários da situação. Depois deste período em que, os debaixo, se odeiam entre si e se acusam das maiores vilanias e comportamentos soezes (potenciados pelas fake nesws espalhadas pelas redes sociais), como está a acontecer agora, um dia a exploração das identidades e dos seus conflitos (entre pretos e brancos, entre transexuais e Terfs, entre Benfica e Porto, vegans e comedores de carne, entre historiadores e sociólogos, entre marketing e finanças, etc...) será insuportavelmente imbecil e estúpida e as pessoas finalmente, frustradas pela inutilidade destes pequenos ódios, virar-se-ão para cima e para a riqueza acumulada sem explicação razoável (e o razoável é uma relatividade). Esta viragem não acontecerá, possivelmente, antes de alguns destes ódios terem provocado tragédias absolutamente desnecessárias e sem ganho nenhum relevante. Suponho, numa área que me toca, que a ciência sofrerá imenso nos próximos tempos, em que em vez de modernismo Leibnistziano, caminhemos para um, e ao som de um, activismo centrado em falácias ad hominem e das mais fáceis. (Provavelmente os OK Boomers brancos hetero mesmo que de esquerda serão shut down e com eles os departamentos de STEM entregues a epistemologias pós esclavagistas e/ou ontologias feministas. De seguida os departamentos de estudos feministas serão expurgados das lésbicas que continuem a teimar que uma mulher tem ovários. E por aí ...)

Mas depois destes devaneios, a esquerda terá de encontrar um caminho de volta a Newcastle. Se não encontrar, ficará perdida no cosmopolitismo artificial de Londres e desaparecerá engolida na impotência e no caos gerado pelas lutas fraticidas de grupos e subgrupos folclóricos que se querem apoderar da linguagem acreditando que aquele que controlar as palavras controla a realidade.  (A realidade de facto é definida (não controlada) por palavras, sempre o foi, a questão é que ninguém controlará as palavras, as conversas serão sempre como as cerejas). A realidade rir-se-á. Esta esquerda insuportavelmente totalitária e/ou delirante não será  tolerada. Será dizimada e substituída, potencialmente,  por uma direita abertamente xenófoba, racista e misógena que fornecerá "tranquilidade", "ordem pública", e protecção musculada a quem possa pagar o preço.

O problema irresolúvel da esquerda, parece ser a incapacidade de compreender o valor evolucionista da natureza humana (sim é tóxica). E de esperar por Godot na esquina da construção do "homem novo" e "perfeito" que nunca virá.  Porque esse "homem novo" parece um conas de sabão sem drive, sem paixão, sem inquietação, sem angústia sem pulsão. Um palhaço que viveria em contemplação e sempre satisfeito com o seu quinhão que lhe toca no mundo comunista e sem problemas para equacionar e se esbardalhar e estrafegar neles. Um panhonhas incapaz de invejar, de se roer para ser melhor, sem desafios, sem tensão e sem tesão pela vida.

O problema da direita alternativa à direita totalitária e serôdia é semelhante. Em vez do "homem novo" acredita que o "homem velho" criará o "Mercado perfeito" . Um mundo em que o mercado premiará (sempre e somente) o esforço honesto e diligente. O mercado escolherá sempre a melhor solução. A maior eficiência. Desde que se removam os políticos corruptos e os malfazejos regulamentos que cerceiam e castigam a alma e a inciativa humanas. Os seres imperfeitos criarão de modo auto organizado uma sociedade perfeita. E satisfeita esta premissa a compaixão tomará conta dos corações dos homens (todos de boa vontade) e os que forem menos favorecidos pela genética ou pela circunstância aleatória da vida encontrarão na caridade dos demais a mitigação (eventualmente digna) do seu infortúnio.

Lamento mas nem uns nem outros são realistas. O homem novo e o mercado perfeito são utopias. Meras utopias. Uma conduz a um mundo monótono, sem paixão nem pulsão  e insuportavelmente repetitivo. Outra conduz a um mundo igualmente mecânico e de mera optimização de funções de investigação operacional em que só se tem valor porque se resolvem algoritmos. A natureza humana que nos trouxe até aqui é incompaginável com estas tretas. A inveja e mesquinhez tem um valor insofismável para a evolução da espécie. E essa realidade não permite nem a  criação de pureza contemplativa e auto-satisfeita nem permitirá a eficiência máxima total do fair trade. O ser manhoso procurará sempre o short cut o easy way out (é essa uma das origens da criatividade quer se queira quer não).  Lamento mas quem quiser triunfar (no contexto presente e de médio prazo) fornecerá aos esmagados da classe média uma fatia grande da riqueza acumulada. (Esquerda ou direita terão de ir ao pote ...). Inexoravelmente a riqueza acumulada em dimensões obscenas e incompreensíveis será redistribuída (há um momento em que odiar e invejar o outro que é fundamentalmente pobre como nós se torna inútil e sem valor instrumental).  A mal por certo. E, depois, será necessário encontrar um equilíbrio entre a liberdade de criar mais, de ganhar mais, sem que ninguém meta o bedelho, e a necessidade de amparar aqueles que efectivamente necessitam de amparo ainda que circunstancial e efémero. Um equilíbrio entre o Estado social (de solidariedade forçada) e o capitalismo utópico do mercado perfeito (que requer indivíduos que se sentem responsáveis por si próprios). Um equilíbrio instável mas imperativo. Que não premeie a corruptela da negociata manhosa nem premeie o "esquema" de aldrabice do subsídio proxeneta do esforço dos demais.

E, para já lamento pelos meus amigos de esquerda que honestamente acreditam que são melhores pessoas, que possuem uma superioridade moral e estão ungidos, mas quem me parece mais capaz de executar e oferecer este equilíbrio aparenta ser uma direita tolerante sem complexos e sem vínculos à religião, à tribo, e à corporação.

Aguardemos pelos próximos capítulos. 

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