terça-feira, fevereiro 13, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (12)

Nick Quase Sem Cabeça

A maior parte de nós consegue passar pela vida balbuciando escassas centenas de vocábulos. Não necessitamos de articular mais do que umas dúzias de frases para nos fazermos entender. Com ou sem inovações bizarras no domínio da semântica e da sintaxe, o país “real” sobrevive magnificamente com recurso a um léxico reduzido. Gente famosa ou gente com aspiração à fama entendem-se às mil maravilhas nestes códigos simples. Se o leitor ou leitora deseja dominar esta linguagem basta-lhe adquirir algumas revistas e frequentar salões de cabeleireiro. De facto a coisa é indolor. Não requer, sequer, muitos neurónios funcionais.

O mundo, por outro lado, acomodou-se a esta existência. A sociedade não é, realmente, feita de instituições, de processos ou de sistemas. Luhmann estava profundamente equivocado. O “tecido” que serve de base à sociedade são os “eventos”. Podem ser “escândalos”, “casos”, “doenças”, quaisquer “dificuldades” ou “aspirações” menores ou maiores das pessoas “que são faladas e fotografadas”.

A sociedade é, realmente, um continuum de descontinuidades. Aparentemente, todos os eventos são, por natureza, singulares. Não existem conexões entre eles. Constituem um borbulhar aleatório e espontâneo. O “próximo” episódio simplesmente toma o seu espaço na arena social substituindo o escândalo anterior. Não há memória. São eventos singelos sem relação e não existe a possibilidade de aprendizagem. Nada é legado ou transmitido. Numa sociedade sem aprendizagem e sem memória em que não há legados, não há tempo, apenas coisas que se sucedem umas após as outras. Numa sociedade em que não há tempo, há apenas caras que se tornam iguais, gestos iguais, pessoas que se repetem como clones. Nesta sociedade, precisamos de poucas palavras para nos entendermos.

É o triunfo final do solipsismo, o tempo é aqui e agora e só eu existo. Sem estes “eventos” não existe vida. Nem imprensa. Nem politica, nem políticos nem jornalistas. No limite trata-se de estar num determinado espaço e tempo e produzir uma ou outra afirmação sobre os benefícios do botox ou da última cirurgia plástica às mamas que alguém fez ou pensa fazer. Ou sobre o que comeu fulano ou fulana. Ou sobre a atribuição de recursos para uma obra. Ou sobre a instalação de uma empresa num concelho. Ou sobre uma pessoa que morreu porque demoraram sete horas a transportá-lo para um hospital. Ou sobre uma criança, mais uma, que era queimada com cigarros por um “pai” psicopata. Ou um futebolista que estava bêbado mas a lei foi aplicada na versão suave porque sim. Uma hora depois, estas coisas pereceram, e foram substituídas por novas afirmações sobre outras coisas quaisquer. O período de vida útil de um “evento” é inferior ao de um iogurte. É também, o triunfo final do nihilismo. Tudo se torna igual e equivalente. Muito embora não seja realmente verdade, parece que todos poderemos aceder a tudo. Todos podemos ser famosos. Esta é a suprema ilusão de uma sociedade sem memória e sem tempo. Parece. Tudo parece. Pouca coisa é.

© José Manuel Fonseca

1 comentário:

Animal disse...

a não ser a chave do euromilhões. é o único evento que insiste em não se materializar aqui em casa...