quarta-feira, fevereiro 14, 2007

O meu pai

faria hoje 76 anos. E faz, hoje. exactamente nove meses que ele morreu. Era a pessoa mais generosa que eu conheci, tinha um sentido de humor terrível e paradoxal, uma parte do qual consegui herdar. A generosidade e a capacidade de perdoar é que não herdei. Uma vez, tinha eu uns quinze anos, a caminho do monte no Alentejo, parou o carro saiu e mandou-me fechar os olhos, perguntou-me o que é que eu via. Nada. Pois é isso mesmo que vais herdar de mim, vou dar-te o que puder em vida, mas não esperes grandes heranças. Deu-me um mundo em vida. Outra vez, já eu era adulto e pai, pergutou-me se eu ficava aborrecido com o facto de ele dar dinheiro a pessoas da família e a amigos ou pessoas que simplesmente precisavam de ajuda. Como se eu tivesse direito a reclamar ou tivesse o direito de realmente ficar aborrecido. Fiquei um pouco embaraçado e sem saber o que dizer. Que o dinheiro era dele, que eu não tinha nada a ver com isso. Mas ele fitou-me e voltou à carga. Apeteceu-me abraça-lo e dizer que era um pai sem igual. Mas um gajo nestas ocasiões mantêm sempre a puta da compustura e voltei a dizer-lhe as mesmas merdas que já tinha dito. Podia ter-lhe dito que raramente se conhecem pessoas como ele, com capacidade de olhar realmente para o "outro" e para o compreender sem julgar, que ele encarava as dificuldades da vida com resignação mas sempre rindo-se na cara da adversidade, o que nos dava um suplemento de coragem.

As memórias já vão sendo mais doces, embora me custe ainda escrever sobre ele. Lembro-me de um dia chegar a casa e ele estar com o neto, o meu filho mais velho, sentados no chão da sala reordenando por cores os cd's que estavam espalhados num mar... devo ter ficado embasbacado e chateado, eles olharam pra mim encolheram os ombros e continuaram...

Nunca lhe ouvi nenhuma recriminação aos muitos que se aproveitaram da generosidade dele nunca devolvendo empréstimos. Nunca lhe ouvi expectativa de reconhecimento ou de agradecimento de terceiros. Fazia porque achava que devia fazer. Dava porque achava que devia dar e sempre sem expectativa que alguém sequer viesse agradecer. Nunca aguardou louvor. Pediu-me, quando me tornei adulto, que não me vendesse. Foi quando me contou a história do meu avô, o pai dele, e me relembrou episódios da vida dele. Não aceitar dinheiro que não tem o nosso nome. Não trocar por dinheiro a nossa dignidade, a nossa consciência a nossa alma. Obrigado pai por me teres ensinado que há um conforto gigantesco em podermos olhar os outros nos olhos, podermos circular por aí de queixo levantado mesmo que a roupa que podemos vestir já não estejam na moda e o orçamento seja curto para parecermos o que nunca fomos.

Gostaria apenas de vir a ser, para os meus filhos, um bocadinho daquilo que ele foi para mim. Se isso acontecer terei sido um ser humano decente. Ele era excepcional. E eu tenho muitas saudades dele.

7 comentários:

Cristina disse...

dizer o quê? fez um grande trabalho, o teu pai.
um beijinho.

LM disse...

Sem palavras.
Os textos de amor são assim.
Beijinho

ZGarcia disse...

Do melhor que teli
.

Anónimo disse...

" (...) sentados no chão da sala reordenando por cores os cd's que estavam espalhados num mar... devo ter ficado embasbacado e chateado [duvido ;)], eles olharam pra mim encolheram os ombros e continuaram..."

Simplesmente delicioso ... O meu Pai é menino para fazer o mesmo com a netinha dele. São ambos adoráveis.

Não me atrevo a dizer mais nada.
Feliz Aniversário

Carlos Araújo Alves disse...

Não, não és um bocadinho, és muito parecido ao que do teu Pai descreves!
Um grande abraço

AC disse...

Este é um grandissímo texto e uma merecida homenagem ao senhor seu pai.

Quando temos princípios, não os esquecemos, nem deles, nem de quem os nos deu.

Cpts

heidy disse...

É disto que tenho medo. Um dia recordar o meu pai, desejar ter dito coisas, que por parvoice tive medo/receio de dizer, ou fazer. Perde-se tanto tempo com pormenores pequeninos...