segunda-feira, julho 02, 2007

A Não Comunicação

Todos os dias inventamos coisas novas e sofisticadas para evitar falarmos uns com os outros olhando-nos de frente. Parece um paradoxo na era dos telemóveis cada vez mais sofisticados e dos milhões de esseêmeesses que se trocam, dos emails, da internet 2.0 com comentários online e fóruns para tudo e para nada....

Pois é. Mas, não obstante tanta fartura e variedade, fazemos cada vez mais esforço para nos evitarmos. Claro que é impossível não comunicar como sustentou o Paul Watzlawick em divertidos, e por vezes inquietantes livros, mas nós persistimos em inventar formas de não comunicar. Sobretudo de não conversar. Simplesmente conversar sobre as coisas e sobre os problemas. Não senhora. Fazemos logo uma reunião, ou várias, com actas. E anexos. Tudo o que evite ter de enfrentar o problema e o possa reduzir a coisas que se possam arrumar em procedimentos. Idealmente desenhamos mais um belíssimo sistema de gestão documental.

E regulamentos. Regras, normas. Abstractas, impessoais. Protectoras. Aqui há uns anos, entrei numa sala de aula que tinha um aviso seco, frio e formal. “É proibido utilizar telemóveis durante os exames”. Pensei imediatamente que os alunos tinham dado algum passo em frente nas técnicas de copianço. Que algures no bar da faculdade uns comparsas de livros abertos estavam a enviar por sms as respostas ao exame. Ou que por auriculares minúsculos e disfarçados pelos cabelos e perucas recebiam as respostas vírgula a vírgula. Mas não. Não era por causa desses manhosos. Tinha acontecido que um assistente de direito, durante uma prova, se entretivera a ditar umas minutas de cartas e outras importantes deliberações, à secretaria. Que no escritório tomava notas, de forma, quiçá, pouco diligente, porque o assistente berrava desalmado e insultava a dita secretaria que possuiria apenas uma escassa percentagem do cérebro, para além de moral sexual duvidosa...

Claro que até à sexagésima fila da sala de exame (que possuía apenas dez filas...) a rapaziada teve dificuldade em se concentrar, não conseguiu responder às perguntas, agitou-se, mas evitou chamar a atenção do assistente que, já se sabe, tem a faca e o queijo senão na mão pelo menos à mão de semear. E, depois, claro está, pela calada fez queixinhas ao director da faculdade. O assunto mereceu superior consideração e, em lugar de se chamar o assistente e de lhe pedir encarecidamente que não repetisse a façanha, ou, quem sabe, perguntar-lhe se era assim um imbecil de modo consistente ou tinha sido meramente episódico o fenómeno. Não senhora. Fez-se uma regra abstracta, pública, dirigida a todos, mesmo os noventa e nove por cento dos que nunca lhes tinha passado pela cabeça serem tão idiotas. Com essa regra, insultou-se a inteligência de muitos mas, poupou-se a alguém um confronto que eventualmente poderia ser penoso e comportar angústias ou mesmo medos.

Na área da gestão de carreiras, de atribuição de recompensas, de promoções, de avaliação de desempenho também se observa este esforço insano para evitar a comunicação face a face. Evitar confrontarmo-nos com o “outro”. Temos arranjado múltiplos sistemas de pontos e critérios e ponderadores para reafirmar e sublinhar o que toda a gente sabe à partida. Mas que aparece disfarçado em fórmulas, para que não sejamos forçados a explicar as escolhas, que toda a gente sabe que já estavam feitas mas que deste modo realmente “científico” ninguém tem de argumentar.

Um dos sintomas de esquizofrenia organizacional consiste no avolumar destes procedimentos que nos protegem das ansiedades da vulgar conversa e da descoberta que o outro é um ser muito razoável e até simpático...

© José Manuel Fonseca

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