quarta-feira, janeiro 31, 2018

O paradoxo da Participação ….


O paradoxo da Participação ….  A transformação do espaço social em círculos de “adeptos” e a quasi eliminação da racionalidade

Um dos paradoxos mais deliciosos desta existência 3.0, é o da “democratização” da participação no espaço e na arena social ter conduzido ao bloqueio da conversação.

Aparentemente as redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, Tumblr, Youtube, e os espaços de comentário público, etc.) comportaram um acesso gratuito à geração e distribuição de “conteúdos”, isto é deram voz, a todos, ou quase todos desde que possuam um ponto de acesso à “rede”. O que na realidade significa quase toda a gente, nalguns sítios mesmo os sem abrigo, não tem residência mas tem acesso à publicação do que lhes vá na alma. Independentemente do género, idade, credo, afiliação política, clubística, etnia, cor da pele, educação, cultura, posição social, situação económica, e nível de saúde mental... todos podem participar em todos os debates que decorram na sociedade e expressar livremente a sua visão sobre os assuntos da cidade, dos cidadãos, da cidadania e da vida em geral.

À primeira vista, e possivelmente à segunda também,  esta democratização quase total e absoluta do acesso à conversa na arena pública deveria ter gerado mais e melhor informação, menor possibilidade de mistificações e de ocultações, mais conhecimento e melhor nível de escrutínio com base em factos. Em resumo, um acesso mais rápido, perene e eficaz à “verdade”.  Ao invés, e na realidade, nos dias que correm, vivemos debaixo  de uma cacofonia informacional em que é realmente difícil distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Vivemos numa época em que a manipulação das massas, aparentemente, nunca terá sido tão facilitada nem tão eficaz e eficiente.  

Curiosamente o que acabou por acontecer foi que em lugar de um crescimento da qualidade da participação individual, do florescimento do indivíduo mais culto, mais informado, com mais acesso a factos e a modelos de interpretação e classificação dos factos e da realidade se deu um acantonamento das pessoas em grupos cada vez mais extremados, irracionais e hostis. E, este fenómeno nota-se em quase todos os âmbitos da participação e do espaço social.

Não há mais cidadãos. Há adeptos. Adeptos no sentido de afiliação primitiva e primária como em qualquer clube de futebol. Falemos de política, religião ou de produtos e serviços. Há adeptos fanáticos que aplicam de modo acéfalo a lógica “in-group-out-group”.  O que “nós” fazemos é sempre bem feito, e se por acaso resulta mal fica a dever-se a circunstâncias externas imprevisíveis ou incontroláveis, o que os “outros” fazem é sempre mal feito, com intenção maviosa, e se por acaso deles resulta bem é por mero acaso ou sorte se resulta mal é porque é o que habitualmente fazem, e faz parte do código genético deles serem grunhos e javardos. Como é que nos afiliamos nestas circunstâncias? Do mesmo modo que acabamos adeptos de algum clube. Por assimilação de valores de grupos a que pertencemos nos círculos sociais básicos – família, escola, bairro, por empatias com símbolos ou por relações afectivas básicas.


Na realidade estes processos sempre existiram, a questão é que com as tecnologias de informação e a globalização tornaram-se quase claustrofóbicos, hegemónicos e incontornáveis. E muito extremados. O espaço social aprece quase totalmente bipolarizado. Sem middle ground.  E a conversa cessa. Não há possibilidade de diálogo. Não se constroem espaços de avanço e progresso pela geração de novas ideias e novos consensos. Só clichés enviados de cada trincheira aos “outros”. O “outro” deixa de ser um ser a conhecer e compreender para passar a ser um inimigo irremissível.  Na política, na religião, na justiça e mesmo na economia.

Já li coisas assustadoras que desculpabilizam a Volkswagen e outros construtores alemães da coisa espantosa que foi experimentar em símios e seres humanos os efeitos dos gases produzidos por  motores diesel! "Sim, mas...". A relativização do mal produzido pelo “nosso” lado é uma das características do processo.  A duvidosa ética empresarial e ambiental, as sistemáticas práticas de obsolescência programada  da Apple não desencantam aqueles que em Tóquio alugam lojas da Apple para realizar cerimónias de casamento! O consumo de bebidas ao triplo do preço de qualquer concorrente, na Starbucks está por certo associado a uma dimensão existencial, significação emocional, muito para além do produto consumido que é indistinguível do produto noutro sitio semelhante. Mas experimentem frequentar os fóruns em que se debata este tipo de pequenas/grandes questões e repare-se no discurso fanatizado de alguns próceres das marcas e no ódio destilado, de volta, pelos “inimigos” do produto! Numa economia capitalista baseada na teleologia do consumo, o fim último, e o valor e significado definitivo, da existência humana é a compra de ... stuff...,  o clima é propício às marcas que tenham conseguido erigir os seus consumidores em “adeptos”  que usam com orgulho as cores da “fé” e regojizam com as “vitórias” sobre os concorrentes. Leiam posts de “adeptos” da Apple e da Samsung... ou de adeptos da Audi e de adeptos da Honda.

Idem na política, na justiça ou nos assuntos religiosos. O insulto flui quase imediato e conduz, necessariamente, ao acantonamento dos participantes nos grupos em que se articula aquilo que as pessoas querem ler ou ouvir ou ver. O que se produz é apenas o fim da conversa. A ausência de debate. O diálogo é substituído pelo “whataboutismo”... “Sim, sim, mas por outro lado vocês também...” , ou pela negação dos factos “never happened, fake news, alternative facts, different perspectives...”, pela desvalorização e relativização de princípios, ou pelo simples delírio, etc... Nos últimos dias li coisas inenarráveis, afirmações de mulheres membros destacados de igrejas evangélicas, a desculpabilizar o eventual comportamento de infidelidade conjugal do presidente americano com atrizes de porno porque, alegadamente, o presidente estaria “ungido” por não menos que deus himself...  ou os reiterados pedidos de vedetas americanas brancas para que os brancos cessem de procriar porque os seus filhos apenas prolongariam o privilégio branco mais que injustificável ...

Em última análise ganham com este estado de coisas, os que possuam menos escrúpulos, os que pretendam de impingir banha da cobra  e necessitam de populações de acéfalos que se tornaram voyeurs e gostam do espectáculo perpétuo e perene... de consumidores sem capacidade ou sem vontade de escrutínio sobre o que compram...

Não deixa de ser um interessante, e perigoso, paradoxo que o contexto que propiciaria o surgimento de pessoas mais conscientes, preparadas, exigentes, críticas, adultas, autónomas, tenha, pelo contrário, gerado uma massa de tolos que usam com orgulho o cachecol  ...  














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