sábado, outubro 20, 2007

Então agora que o íamos promover é que se vai embora?

Um dos problemas mais fascinantes da moderna vida organizacional consiste na determinação do “valor” dos recursos humanos. Valor do desempenho, valor potencial do seu desenvolvimento. A forma como procuramos determinar esses valores é, em si mesma, outra coisa fascinante. Claro que poderíamos dizer que os rituais de “avaliação de desempenho” são, apenas, mais uma forma de protecção que encontrámos para evitar ter conversas normais e vulgares, com os que nos rodeiam, por forma a estabelecermos relacionamentos satisfatórios, simples, eficazes e produtivos. Mas não. Parecemos preferir evitar completamente enfrentar o “outro”, mormente em aspectos em que a dissensão pode emergir, com todo o cortejo de coisas desagradáveis e viscosas, como emoções, que daí, em geral, advêm.

Através de esquemas, sofisticadíssimos, determinamos em “score cards” complicadíssimos a “importância” para a organização de cada um dos seus recursos humanos. Há uns anos, um amigo meu tendo ficado furioso com a sua avaliação de desempenho, numa multinacional, ameaçou sair, tendo os “scores” sido, assaz rapidamente, “reavaliados”. Tinham sido, oportunamente, descobertos erros na primeira avaliação talvez, e quem sabe, porventura, relacionados com a “descoberta” facultada pelo meu amigo que o irmão era chefe de gabinete de um ministro particularmente essencial para a vida da multinacional. (Esta história, apesar do que possam pensar, não se desenrolou em Portugal, não é portanto, necessário tentarem adivinhar quem é o meu amigo...).

O valor das pessoas, é assim de geometria variável, aumentado com circunstâncias e coincidências como a anterior e baixando quando a saída das pessoas parece inevitável ou desejável. Se as pessoas saem por sua iniciativa, parece existir um fenómeno de rejeição sentido por quem fica, traduzido num processo de dissonância cognitiva, que só pode ser resolvido pela desvalorização da pessoa que sai, ao fim ao cabo um inútil ou um “desgraçado” a quem só já mantínhamos por mera caridade. Se a pessoa que sai era importante para a organização trata-se, adicionalmente, de um “mal agradecido” a quem estávamos à beirinha de promover a director geral de sistemas transversais, e que afinal saiu como um “traidor” por vezes sem “escrúpulos”...

Sempre achei extraordinários os diálogos de separação, quer nas relações pessoais quer nas relações de trabalho.


Curiosamente, nos últimos tempos o valor das pessoas não está associado ao seu passado. O valor da pessoa não apresenta correlação com os desempenhos anteriores mas sim com uma noção de “potencial”. Com esta subtil transformação de sentido, quase podemos dizer que poderemos eliminar as avaliações de desempenho, processos caros e demorados que ainda por cima geram expectativas, irrealistas por certo, às pessoas que são avaliadas de modo positivo. Reenquadrando tudo no “potencial”, fazemos depender do futuro, sempre deslizante, uma opinião sobre o valor de qualquer pessoa. Poderemos sempre argumentar que ainda não “vimos” nada de extraordinário, colocando, sistematicamente, tudo em questão, nomeadamente gerando na pessoa uma angústia sempre renovável pela necessidade de “provar” de novo e sempre no futuro o que vale, o que, mormente em contextos voláteis com os do presente, se torna um exercício de aceitação da incerteza e de insegurança verdadeiramente notável. Isto tem a vantagem de desgastar bastante as pessoas cujo património de vida, de experiência e de bom trabalho numa qualquer organização será sempre desvalorizado e sem relevo.

Criam-se organizações sem memória, sem lealdades nem cumplicidades duradouras entre os seus habitantes, mas a quem será, necessariamente, exigida uma dedicação e comprometimento organizacional unilaterais. É talvez por isso que a muitos de nós, pensando nas relações e “contratos psicológicos” de trabalho com algumas organizações, ocorre a memória da figura imortalizada pelo Bordalo Pinheiro.
©José Manuel Fonseca

4 comentários:

Sam Cyrous disse...

Este texto não poderia estar mais de acordo com a realidade da larga maioria das instituições dos tempos modernos.

Enquanto não dermos atenção ao lado humano da realidade organizacional, o lado económico continuará assim: instável e, previsivelmente, detentor de falhas profundas...

Carlos Araújo Alves disse...

GRANDE verdade, socialmente transversal.

San disse...

Obrigada por me ajudar a arrumar a cabeça!

Rui Rebelo disse...

BELO TEXTO!