domingo, outubro 19, 2008

Ad Hominem

Ciclicamente dá à costa, com ardor, a dor de corno sobre o Saramago. É imperdoável que o homem tivesse sido (parece que ainda é) comunista. O que quer que isso seja, e signifique, hoje, conspurca desde o berço o que o homem escreve. Sem pontuação ainda por cima. Tivesse sido outro a inventar aquela ideia da península Ibérica ir por aí afora desligada do continente, ou de ficarmos todos cegos, ou de votarmos todos em branco num excesso de visão, ou de existirem duplicados de nós próprios, ou mesmo a iconoclastia do evangelho e, não faltariam por aí os louvadores de tanta genialidade, criatividade e sagacidade. Mas o homem tem de penar pela sanha persecutória dos tempos do Diário de Notícias. Não basta, contudo, lamentar e condenar a deriva estalinista que o contaminou. Por causa dela, há que recusar ao desgraçado qualquer arremedo de mérito pelo que fez no tempo que lhe sobrou à actividade de comissário político. Reduzir a sua escrita a pedaços de menoridade ao alcance de qualquer dos seus mais acirrados críticos. E lastimar profundamente a atribuição da comenda do Nobel. Coisa que, se lhes fosse conferido para tal, alguns não hesitariam em corrigir retirando o prémio em público e com o autor arrojado e humilhado em praça central de cidade capital e com transmissão em directo na CNN.

Eu devo confessar que li alguns livros, gostei deles, e houve mesmo alguns que achei arrebatadores. Lamento que o homem tenha desperdiçado tempo a perseguir adversários políticos, que tenha desperdiçado talento a impor visões asfixiantes e irrealistas do mundo a terceiros. Mas espero, sinceramente, não vir a ser condenado ao fogo eterno por ter gostado de ler o que o homem escreveu mesmo sem pontuação.

1 comentário:

Rebel disse...

A minha leitura de Saramago resume-se à primeira frase de um dos seus livros que voou imediatamente pela janela. Dizia a coisa: "Aqui é onde a terra começa e o mar acaba. Foi um excelente pretexto para ir reler a Lírica Camoneana, na altura.
Já não tinha grande opinião do homem, e quando tive de passar uma manhã com mais sete ou oito mafarricos encerrados numa mesma sala a ouvir comunicações de empreitada, a minha impressão piorou substancialmente.
Depois, experimento uma enorme dor de cotovelo por o Nobel nunca ter sido atribuído a Virgílio Ferreira...
Mas como não quero dar parte fraca, ignoro-o!