quinta-feira, janeiro 11, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (1)

O Boato

Uma das trivialidades, talvez mesmo uma autêntica instituição, com que convivemos nos nossos quotidianos é o boato. Umas vezes insidioso e malévolo, outras vezes mais ligeiro e inócuo, quando não mesmo divertido. O boato, nem sempre resulta da mera expressão da cobardia e mesquinhez dos seus autores(as). Por vezes, pode ser um valioso indicador de mal estar social ou organizacional. Pode relevar de inveja mal contida mas, também, pode constituir um salutar mecanismo de escape a situações de verdadeira esquizofrenia organizacional ou social. Em geral, o boato proporciona uma forma barata de “corrigir” aspectos da realidade com que convivemos e nos desagradam. É um óptimo mecanismo de substituição: para a ineficácia e lentidão do sistema de justiça; para a “injustiça” no sistema de promoções no trabalho; para as pequenas e médias vinganças ou como alternativa para uma vida de trabalho honesto e abnegado!

Sem querer produzir uma taxonomia ou tipologia desta importante forma de comunicação humana, fiquemo-nos por dois exemplos meramente ilustrativos das situações anteriores. No primeiro caso, podemos falar de rumores sobre um determinado produto, como contendo substâncias tóxicas, de preferência com a sugestão que façam mal às crianças. Depois, espalha-se a insinuação através do mail, exemplificada com uma foto, retirada da net, de uma criança aparentemente afectada por uma qualquer doença horrível, junta-se a “certificação” que foi “um amigo” que nos avisou com base numa palestra, a que assistiu no Centro Esquimó de Cripto Genética, palestra essa, da autoria do ”conhecido e reputadíssimo Professor Immanuel Konrad”. O produto, provavelmente de qualquer concorrente nosso, contra o qual não conseguimos triunfar no mercado em termos nobres e dignos, sofrerá quase de certeza um repentino abaixamento de vendas, e o departamento de Marketing ou de Public Relations do concorrente lutará durante semanas pela recuperação da reputação, que provavelmente nunca mais será a mesma. Variantes deste instrumento de “correcção” da realidade, são os “assaltos” a carros nos sinais vermelhos, perpetrados por “romenos” segundo uma informação fidedigna de um “tenente” da policia de segurança pública. Raramente nos interrogamos se na PSP há patentes como tenente, capitão etc...

Neste era de franco progresso tecnológico, o mail, substituiu a mais velha técnica que era a da confidência, em absoluto e sagrado sigilo, que é solicitado pela alminha dos filhos, a uma pessoa que, sabíamos de antemão, trataria de pôr a circular a coisa em todo o escritório sede e nas filiais incluindo a da Kabardino Balkaria, em menos de cinco minutos. De facto, o advento da internet permitiu amplificar enormemente quer a rapidez de disseminação quer a amplitude geográfica dos danos provocados pelos boatos...

No segundo caso, mais benigno, e em particular para amantes de literatura policial ou de espionagem, pode deixar-se “esquecido” um dossiê crucial com o plano de actividade política de um qualquer grupo de pressão, por exemplo um grupo ambientalista. Presumivel e rapidamente o dossiê circulará até ao seu “legítimo” destino. Um infortunado estratego do governo perderá o seu tempo a antecipar acções que nunca estiveram planeadas, enquanto o grupo desencadeia acções espectaculares elsewhere. O estratego poderá, eventualmente, ter de procurar uma actividade mais proveitosa e interessante, alguns spin doctors serão chamados para o seu lugar e overall aumenta-se o emprego...

Todos já convivemos com os boatos mais ou menos sugestivos sobre a natureza e as estatísticas da sexualidade dos colegas de trabalho. Em geral, tratam-se apenas de projecções nos outros, de comportamentos que secretamente se desejariam ter... Há pessoas que vêm em todo o lado gente que subiu na “horizontal” e, fazem circular a sua versão miserável do sucesso alheio sempre atribuível à sorte ou à falta de vergonha. Enquanto, por oposição, o sucesso dos próprios se deve à excepcional perseverança e tenacidade que conduziu, claro está, a uma vida inteirinha de esmerado esforço sempre ético e ao sabor de todos os códigos deontológicos, mas, helas, sempre com um grau de reconhecimento largamente insuficiente, ou sempre marcado por aquele azar dos Távoras que nos acompanha, desde que nos conhecemos, e que nos cerceou o alcançar dos píncaros que amplamente merecemos...

Um dos erro mais comuns consiste no combate sem tréguas aos múltiplos boatos que assolam o interior de uma qualquer organização ou que partem de concorrentes. Paradoxalmente, a credibilização do boato começa pelos insistentes e por vezes exaltados desmentidos...

Se, por exemplo, corre o rumor que a empresa passa por aflições financeiras, não sendo verdadeiras, o mero esquecimento do funcionário de encomendar café para a máquina que está na copa, torna-se uma evidência “científica” que corrobora o boato. Se, por causa disso, um qualquer director decide que se vai comprar café de lote ainda melhor e mais caro, como forma de demonstrar que pelo contrário a empresa até atravessa um momento cheio de cash flow, mais uma evidência do descalabro de Sisífo das contas da empresa... ouvir-se-á, informalmente em pequenos grupos junto à bendita máquina do café - “ainda por cima querem atirar-nos poeira para os olhos”...

Au contraire, uma boa solução é a de amplificar o boato exagerando-o até ao limite do inverosímil... Não só a empresa está à beira do abismo, como já a partir de amanhã teremos de iniciar uma campanha de recolha de fundos a nível nacional, eventualmente, o património imaterial da empresa será colocado à venda na feira de Carcavelos, alguns funcionários serão deslocados para Trafalgar Square para peditórios e outros funcionários terão de trazer de suas casas objectos de valor que possam ser vendidos em quermesses dominicais no Campo das Cebolas e por aí adiante...

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José Manuel Fonseca

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