sexta-feira, janeiro 12, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (2)

“Você acha que isto funciona?”

A resposta veio, sem ambiguidade, mas sem grande sofisticação do léxico. Foram dois socos que o “emissor” recebeu como satisfação para a sua interrogação. Nem sequer alguns sons, eventualmente recriadores dos fonemas que originalmente devem ter saído da garganta dos primeiros hominídeos que deram origem à fala humana, foram emitidos. Apenas uma agressão ao interlocutor. Mais tarde, descrevendo a cena, o “emissor”, perante terceiros, que não tinham testemunhado a situação, salientava o absurdo da reacção do agressor. Como poderia alguém reagir daquela forma àquela pergunta inócua, formulada em plácido tom de voz e sem inflexões de timbre? O individuo tinha de ser louco, e deveria ser exemplarmente punido. De facto, ninguém em bom juízo poderia entender como é que uma interrogação daquelas pode desencadear uma tal resposta.

E, no quadro do modelo cognitivo/cibernético de comunicação ficamos impotentes para explicar a situação. Não parece colocar-se a hipótese do agressor não ter compreendido a pergunta. Teremos de nos socorrer de uma outra hipótese, aquela que remete o “receptor” para uma área de patologia mental ou de defeito de carácter. Não será na área da comunicação humana, como mero mecanismo de “transmissão e transferência” de significados entre interlocutores que poderemos entender situação tão bizarra.

É claro que se pensarmos um pouco, poderemos, ainda no contexto da comunicação humana, ir um pouco mais fundo. Qual era a tónica daquela interrogação? O plácido tom de voz teria sido substituído por um ênfase? Seria o “isto”? Um objecto exterior, independente e indiferente, àquele a quem a pergunta era dirigida? Seria o “acha”? Implicando já uma subtil sugestão de possibilidades sobre as capacidades de decisão, avaliação e escolha do “receptor”? Assim do tipo, “não consegue perceber que “isto” não funciona?” Seria o “você”? Assim como quem diz, “você seu imbecil desde que foi concebido até ao momento em que cessar de respirar, que nunca conseguiu nem nunca conseguirá raciocinar de modo minimamente satisfatório?” E a linguagem corporal? A expressão facial? Reforçaria a teoria da placidez ou a teoria da repreensão insuportável?

E, o contexto situacional? Estaria esta interacção a decorrer em frente a uma audiência? Estaria o “receptor” em situação de perder a face? E, a história anterior de interacção entre estes dois seres? Teria sido pautada até então por “diálogos” deste ou daquele tipo? Como seria o típico quadro emocional quando aqueles dois seres trocavam vocábulos? Depois de considerarmos estas novas perguntas, talvez possamos não nos precipitar para patologias mais complicadas, nem pronunciar palavras de domínios linguísticos fora do contexto falado naquela instalação fabril onde testemunhei esta interacção humana.

Os processos de comunicação são frequentemente tidos como neutros e “assépticos”. Meros mecanismos de processamento de significados sobre realidades objectivas. Os problemas, neste quadro, ocorrem apenas em domínios semânticos e sintácticos, ou ainda na intromissão maçadora de “ruídos” que impedem a apropriação da totalidade da mensagem. Alegadamente, se estivermos na posse da linguagem certa, saberemos o que alguém quer dizer.
“- Meu, quantas batacas batem no teu Ozibisa?”, seria uma interrogação que deixaria os meus pais perplexos, não obstante constituir uma simples maneira de perguntar as horas no seio de uma das comunidades durante a minha adolescência. Portanto aos pais, aparentemente, bastaria conhecer a “linguagem” para entender os filhos...

Contudo, muitas vezes a comunicação torna-se prenhe de ambiguidades e fonte de equívocos, mesmo, talvez sobretudo, quando na superfície, todos os participantes são proficientes na linguagem que alegadamente todos “partilham”. Numa das comunidades em que me insiro, a dos gestores, que partilham uma curiosa linguagem, alguém pode afirmar com ar sério e austero:

“- A prévia hierarquização dos atributos do produto e sua adequação às necessidades e potenciais utilizações, é condição de sucesso no lançamento de novos produtos.”

Aceitemos que este enunciado constitui uma asserção indisputável no seio daquela disciplina. Só que aquela frase, tanto pode constituir uma recomendação para alguém que pretende aderir ao plano tecnológico, como uma critica velada ao departamento de marketing, como uma recriminação por um falhanço clamoroso do departamento de Novos Produtos, como uma frase cínica do director financeiro que secretamente se delicia com o tiro no pé do administrador. Para sabermos em concreto o que significa aquela frase necessitamos de muito mais que o que nos fornecem os modelos tradicionais de comunicação humana. Necessitamos de saber qual era o tom de voz, como era a linguagem corporal, o que estava por “trás” da frase, ou seja que história anterior decorreu, quem estava presente, quem não estava presente, se aquele tipo de frases pomposas pertence ao quotidiano daquela organização ou não. Precisamos de “pistas”. Então as “pistas” tornam-se parte dos nossos processos de comunicação. Então os processos de comunicação tornam-se processos sociais. Então os processos sociais tornam-se parte do significado que conferimos à nossa comunicação. Então a comunicação não pode mais ser uma mero mecanismo, tornando-se mais do que um meio. Torna-se numa das expressões de vida, e numa característica essencial da própria condição de ser humano e de estar vivo. E, estar vivo num determinado contexto, em que a vida vai sendo descrita e construída à medida das palavras que são inventadas e criadas para a descrever e viver.
©

José Manuel Fonseca

3 comentários:

Animal disse...

e afinal, aquilo sempre funcionava?

Piotr Kropotkine disse...

funcionava pá....tinham era de ligar à electricidade pá.....

Priscila Gonçalves medina disse...

Tenho um blog sobre informática,com notícias e links interessantes.Downloads de músicas e livros,estou fazendo a divulgação...Obrigada