terça-feira, janeiro 16, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (5)

A minha geração

A minha geração está agora no poder. Entreteve-se em meados da década de setenta a discutir politica com um entusiasmo pueril, tipicamente adolescente, cheio de certezas e absolutos imperativos incontornáveis e inexoráveis. Participou em RGA’s loucas e exuberantes, colocando tudo em questão, construindo futuros imaginários inadiáveis e inelutáveis. A minha geração respirou a explosão do ar da liberdade sem verdadeiramente conhecer o cheiro fétido do medo de pensar e safou-se da guerra. A minha geração fazia directas na praia à luz da fogueira e de sonhos generosos discutindo filmes de Tarkovsky e as obras de Milan Kundera. A minha geração descobriu o inter-rail, andou pelos campos e pelas cidades vivendo sem barreiras e quase sem limites. A minha geração experimentou quase tudo o que havia para experimentar. Mas a minha geração envelheceu. É como aqueles pêssegos descongelados nas prateleiras dos supermercado. Era brilhante e radiosa. Mas quando chegou a casa já estava definhada. Macilenta e sem fulgor. A minha geração rendeu-se. Ao dinheiro, ao estatuto, à fama, à capa de revista em que se anuncia ao mundo que se planeia um divórcio ou que se vai repuxar centímetro e meio de pele no focinho. Ao óbvio, ao pragmatismo, ao leasing da mota, ao silêncio.

A minha geração entregou-se. Vive de memórias do que poderia ter sido. A minha geração que tudo questionava aceita agora o absurdo como estado natural. A minha geração vira a cara e olha para os dias de ontem, quando uma pessoa tem um filho queimado e tem de ir com ele para Espanha, porque aqui há armazéns com aviões de combate no valor de milhões e milhões e milhões de euros encaixotados há anos mas não há um sitio para tratar crianças queimadas. A minha geração rendeu-se. A minha geração que produziu motins por segundas chamadas de exame fica agora impotente perante os concursos de promoção que já toda a gente sabe antecipadamente qual o resultado.

A minha geração que produzia acusações terríveis e insofismáveis contra os injustos e injustiças, na cara deles, de dedo em riste, fica agora calada perante a exibição de seres medíocres sem vergonha de serem escutados a combinar resultados de jogos. E, que vão para tribunal declarar que vivem à beirinha da pobreza e da quase indigência para evitar as custas judiciais ao mesmo tempo que os vimos de Armani no aeroporto. A minha geração que discutia as letras do Lamb Lies Down on Broadway como se a seta do tempo dependesse da exegese, consome agora doses cavalares de imbecilidade telvisionada a que constitucionalmente temos todo o direito. A minha geração que era inconveniente e comentava alto durante as sessões de cinema e levava a casa abaixo de riso, assiste agora sem reacção às nomeações de afilhados do jardineiro da cunhada do gajo da concelhia para directores do centro cultural de Alguidares de Centro. A minha geração que prometia solenemente mudar o mundo, muda de camisa para ir assistir ao lançamento da primeira pedra da empresa presidida por um ex futuro deputado que enquanto foi subsecretário de estado a ajudou a criar facilitando tudo e um par de botas. A minha geração que repudiava como heresia e pecado inominável a falta de honestidade comprou uma casa na falésia com desconto da sisa mas dando de vez em quando um donativo para a Liga de Protecção das Minhocas em Extinção.

A minha geração envelheceu. Amadureceu e tornou-se igual a todas as outras que capitularam perante o “fado”. Não há nada de especial na minha geração. Vai a Bruxelas e tem casas de cinco assoalhadas com estacionamento e jacuzzi. Acomodou-se. Vai a despacho. A minha geração aprendeu que o respeitinho é muito bonito. A minha geração acotovela-se para aparecer na TV atrás do senhor ministro enquanto ele diz coisas com ar grave e advérbios de modo. A minha geração tornou-se numa força incontornável de amanuenses venerandos e realistas.
Eu sou da minha geração. Mas não tenho orgulho nisso.

PS. É claro que isto não é a minha geração. Mas eu escrevi isto quando assistia a um programa com uma daquelas criaturas do esplêndido mundo da bola, que não é pior que os outros mundos. Podia ter sido escrito enquanto assistia a um programa com um autarca a incentivar o sábio uso de pedradas, ou com um ministro a explicar porque é que temos de fazer o que ele diz mas não que ele faz... tanto faz...

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José Manuel Fonseca

1 comentário:

heidy disse...

Eu que sou da geração seguinte, começo a pensar o mesmo da minha. Apanhámos com tudo! Do bom e do mau. Fui das primeiras a nascer em liberdade. Por dias... falhei a revolução. Cresci ao som de Zeca Afonso e de tantos outros. Como tantos outros, lutei contra aquilo que eu achava errado. Mas, hoje olho para eles, e vejo decepção... sonhos desfeitos... baixaram os braços. E se queres saber, irrita-me. Não percebo! Ou talvez sim. Conheci alguns dos maiores activistas do tempo da velha senhora. Já estive alguns bocadinhos a interiozar e a comparar o antes e o depois. Cheguei à tua conclusão. Venderam-se. Deixaram de acreditar. Deixaram de sonhar. E quando olham para nós, têm medo. É como se estivessem perante um espelho.