sábado, janeiro 27, 2007

Conversas do Quotidiano Vulgar (11)

“Mas depois, isto é mesmo assim?”

Ora esta pergunta é, frequentemente, feita por alunos com ar desconfiado, ou mesmo céptico, quando não, mais que abertamente trocista, questionando a pragmática da coisa. E, eu, nas mais das vezes, lá amanho um “bom pelo menos devia ser assim...”!

E a pergunta nasce do facto de uma boa parte do meu tempo, ser gasta a industriar os meus alunos, na adequada utilização de semânticas e sintaxes cruciais nos tempos que correm. Ou seja, tento torná-los proficientes numa das linguagens mágicas da contemporaneidade – a da gestão de empresas. Uma das coisas que é essencial que aprendam são algumas declarações de valor, ou de fé, que hierarquizam e adjectivam os sentimentos e emoções que é suposto experienciar posteriormente na vida real. Por exemplo, que os “Clientes” são a razão de existência da “empresa” e, que devemos fazer tudo para os satisfazer, modalidade ou via única para os preservar e manter fiéis aos produtos ou serviços que fornecemos, em concorrência com outras empresas sequiosas de ocupar o nosso espaço no mercado. Este pequeno desígnio justifica toda uma monumental série de sub-ciências, que se ramificam em modelos (mais léxico e regras semânticas e sintácticas a aprender), como Marketing, Estratégia, Qualidade Total, Engenharia Simultânea, Análise de Portfolios, e eu sei lá que mais... Claro que estas palavras se “desmultiplicam” numa complexa teia de considerandos que se espraiam em técnicas e acções a executar por forma a vencer esses marafados da concorrência e alcançar o Éden.

Eu confesso, há neste Universo áreas, que mesmo para mim, já são obscuras. Suponho mesmo que já existam alçapões por onde cairia em abismos dignos dos filmes que envolvem elfos e criaturas mágicas... Já não estou seguro se as técnicas para retermos a fidelidade dos clientes não envolvem, inclusive, o controlo mental, voodoo ou outras técnicas ocultistas. Uma coisa é certa, entre a nossa comunidade emerge uma verdadeira transcendentalidade da expressão “Customer Satisfaction”. Um anglicismo que faz o coração bater mais depressa, e que culmina a litania da glorificação do “Cliente”. O cliente satisfeito e motivado para nos premiar com a sua preferência.

Mas, há luz das experiências recentes, tenho grandes dúvidas sobre a utilidade de uma bela parte deste esforço linguístico que faço na Universidade. E sou assaltado pela descrença dos meus alunos. Ultimamente, ocorreu na minha casa uma verdadeira hecatombe de avarias. Televisões, aspiradores, computadores, consolas de jogos, quem sabe em solidariedade com a minha nova condição de cardíaco, resolveram fenecer ou cessar a sua função. E, dentro ou fora do período de garantia, a interacção com as empresas que fabricaram ou assistem os equipamentos, têm constituído experiências inolvidáveis. Passado o período de garantia, invariavelmente, a solução aconselhada é deitar fora e comprar novo! E, parece de facto mais racional do ponto de vista económico, e do ponto de vista estritamente individual. A reparação é sempre orçamentada pelo dobro de um equipamento que já tem pelo menos mais do quádruplo das rotações por minuto, dos pixels, do ratio de resolução e sabe Deus que mais misteriosas coisas. Mas, e do ponto de vista social? Confesso que me fascina o destino de toneladas e toneladas de televisões e computadores e outros lixo electrónico. Confesso que sou um cínico e que desconfio que a bendita reciclagem seja um conto de fadas que um dia desabe sobre nós. Sob a forma de máquinas auto-construídas com desejos de vingança e angústias existenciais!

Por outro lado, quando a coisa ainda está no período de garantia, como uma consola portátil com três mesinhos de vida de um dos meus garotos, a troca por outra é imediata, nem se discute. Aquilo de qualquer modo já está tão miniaturizado que nem vale a pena pensar numa intervenção humana para substituir um qualquer micro chip de cem menréis. Só que o nem se discute é um belo eufemismo. Afinal o processo demora o seu tempo, mais concretamente umas largas semanas. E, logo por azar, os presentes de Natal eram jogos para a bendita consola. Aparentemente a nova consola que substitui sem mais delongas nem discussões (que o consumidor tem sempre razão e temos de o tratar bem...) vem de Saturno! Ao mesmo tempo que todos estes processos decorrem, o telefone toca. Constantemente. De todo o lado surgem ofertas magnificas. De cartões de crédito sem pagamentos, de operadores de telefones sem mensalidade. De promessas penhoradas de que a empresa que nos contacta tem um mundo de delicias e prazeres à espera de um pequeno click ou sim da nossa parte.

Eu por mim já nem sei o que deva dizer aos alunos. Provavelmente que não deliciem tanto os pobres clientes. Que os deixem em paz e quem sabe, lhes vendam produtos e serviços que simplesmente funcionem...

©

José Manuel Fonseca

1 comentário:

T-Regina disse...

Piotr, o que me parece curioso também é o facto de que, por um lado,as políticas da empresa que trazem como estandarte o lema 'Customer Satisfaction', vão sendo construídas com base em inúmeros e diversíssimos estudos sociológicos, e, por outro, já ser a própria empresa merecedora de um desses estudos que esclareça como uma hipotética ética empresarial terá sido teorizada em função desses outros estudos e se foi desfiando ao actual ponto de uma esgarçada moralzinha empresarial que, como todas as morais de estimação, só visa uma parte, cada vez mais pequena (e mais efémera), do silogismo. Saudações blogosáuricas e bom fim de semana!